sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Entender, mais pelo Sentir que pela Razão


Uma verdade só o é quando sentida - não quando apenas entendida. Ficamos gratos a quem no-la demonstra para nos justificarmos como humanos perante os outros homens e entre eles nós mesmos. Mas a força dessa verdade está na força irrecusável com que nos afirmamos quem somos antes de sabermos porquê.
Assim nos é necessário estabelecer a diferença entre o que em nós é centrífugo e o que apenas é centrípeto. Nós somos centrifugamente pela irrupção inexorável de nós com tudo o que reconhecido ou não - e de que serve reconhecê-lo ou não? - como centripetamente provindo de fora, se nos recriou dentro no modo absoluto e original de se ser.
Só assim entenderemos que da «discussão» quase nunca nasça a «luz», porque a luz que nascer é normalmente a de duas pedras que se chocam. Da discussão não nasce a luz, porque a luz a nascer seria a que iluminasse a obscuridade de nós, a profundeza das nossas sombras profundas.
Decerto uma ideia que nos semeiem pode germinar e por isso as ideias é necessário que no-las semeiem. Mas a sua fertilidade não está na nossa mão ou na estrita qualidade da ideia semeada, porque o que somos profundamente só se altera quando isso que somos o quer - e não quando nós o deliberamos. Assim nasce um desencontro quantas vezes entre a mecânica dos nossos raciocínios e a verdade que em nós já é morta. No hábito dos gestos, as mãos tecem ainda na exterioridade de nós a plausibilidade do que em nós já não é plausível. Então nos é necessário substituirmos toda a aparelhagem de que nos serviríamos e já não serve. Surpresos olhamos quem fomos porque já nos não reconhecemos.
Atónitos perguntamos como foi possível?, quando, onde, porquê?, ao espanto da nossa transfiguração, ao incrível da cilada que nós próprios nos armámos, mesmo quando foi a vida que a armou; porque tudo quanto é da vida, e dos outros, e dos mil acontecimentos que quisermos, só existe eficaz e real quando abre em evidência na profundidade de nós. Como aceitar assim a força da razão, se a força dela está onde ela não está?
Vergílio Ferreira, in 'Invocação ao Meu Corpo'

Balançar

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Retrato perene


Estão os dois de pé, belos e jovens, de frente para o fotógrafo, mostrando no rosto uma expressão de solene gravidade que é talvez temor diante da câmara, no instante em que a objectiva vai fixar, de um e de outro, a imagem que nunca mais tornarão a ter, porque o dia seguinte será implacavelmente outro dia... Minha mãe apoia o cotovelo direito numa alta coluna e segura na mão esquerda, caída ao longo do corpo, uma flor. Meu pai passa o braço por trás das costas de minha mãe e a sua mão calosa aparece sobre o ombro dela como uma asa. Ambos pisam acanhados um tapete de ramagens. A tela que serve de fundo postiço ao retrato mostra umas difusas e incongruentes arquitecturas neoclássicas'. E terminava: 'Um dia tinha de chegar em que contaria estas coisas. Nada disto tem importância, a não ser para mim. Um avô berbere, vindo do Norte de África, um outro avô pastor de porcos, uma avó maravilhosamente bela, uns pais graves e formosos, uma flor num retrato.

José Saramago in Discurso perante a Real Academia Sueca, Estocolmo, 7 de Dezembro de 1998

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

5 Minutos

Tens cinco minutos. Tens o declínio e tens o infame, tens o flamejar de algo que não sabes justificar e tens o rodear de uma estrada que te leva à meta mais profunda. Tens as tuas decisões, os teus problemas, tens todas as preocupações mundanas que te cercam e te estrangulam a cada minuto que passa.
E é isso mesmo, é o passar do tempo. De cinco minutos, já só tens três. Os três estão a contar e o tic-tac do relógio é uma coisa que ainda não sabes travar. Quando dás por ti, o tempo já passou, e tu, onde estás? No mesmo lugar, na mesma posição, no mesmo raiar de espaços que te perturbam, na mesma debilidade e instabilidade que te manipula distraidamente. Todavia, não sabes se vais continuar aí ou se vais partir desafogadamente para outrora, para outro sítio conhecido ou desconhecido, bom ou mau, aborrecido ou de fortuna. Não reconheces as possibilidades perante o que chamas ser a tua própria figura senil. Porque elas são demasiadas, tantas e tão emaranhadas que chegam a ser incontáveis.
Vais mesmo deixar que o tempo se encarregue do que és? Perdeste a dinâmica.


quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Crítica

Quero resguardar em mim o espírito deste texto. A possessividade actual da essência de cada uma das palavras. A intertextualidade que se relata peremptoriamente em busca daquilo que possa vir a ser descoberto.
O génio, o crime, a mentira, a guerra, os sinais infinitos da inadaptabilidade ao meio que nos sofre, as marcas de água e sangue no rosto dos poetas que se invalidam com tanta poeira seca que revolta o ar e nos inunda as fossas nasais para nos apodrecer de loucura, para nos cultivar o medo e para nos sacudir os sorrisos.
A terra suja que calcamos e as folhas rasgadas que nela brotam, as pedras que eram cor de marfim e que são agora cor de fumo, as fábricas de luxúria alardeada que têm o expoente máximo da carência de devoção ao verde amazónico, os tribunais sem tribunas que se constroem à mão dos juízes infiéis que mentem ao povo em nome do papel colorido que o estado lhes envia em envelopes selados pela miséria e pelo desacordo da decadência de uma população não viva, o escarne e o mal dizer à conta de um sistema de ricos e pobres que procuram as latas do desenvolvimento esquecido, os puritanos dos animais inocentes aos quais se referem como mera carne de consumo, a inconsciência da inexistência de uma mesma consciência que pudera ordenar pelos actos que foram impunes e mesquinhos, a hereditariedade de um consumismo extremo pelo pleno amor-próprio, pela ignorância repugnante do altruísmo e pelo casamento faustoso que se prezou entre o egoísmo e a indecência moral de cada cidadão, os elogios egocentristas e as críticas galardoadas, os futebolistas multimilionários e os seus palacetes com o dinheiro daqueles que não conseguem pagar as prestações em atraso, os tiros para o ar e os tiros nos alvos descomunais, o patriotismo descrente na comunidade de anjos que já não o são, a fé e a esperança relevadas para uma escala de milímetros onde já nem o tempo se mede ou conta pela intemporalidade para a qual ele fora enviado, as igrejas e as capelas acusáveis que pregam em nome de Deus e de Cristo pela paz e pelo amor, quando o que fazem é trair os princípios básicos da moralidade, nunca evocando os pontos fulcrais que o divino consideraria monumentais e exactos, as escolas e as universidades que ensinam a teoria e falham a prática, que extorquem os próprios aprendizes e que se dizem em nome da sabedoria quando o que lhes cobre a mente é o dinheiro e o poder, os carros dos políticos que se sentam durante um dia sem pausas numa assembleia de falsidade e de ataques pessoais, não recordando que cá fora a vida não é cor-de-rosa nem há muito menos tempo de olhar as estrelas. A horripilante verdade de uma concreta conspiração involuntária que remete o que temos para o que não temos e nos deixa, a cada dia que passa, em volta do nada.
Um brinde ao desmoronar de uma sociedade e à podridão emocional que a dirige.

sábado, 4 de setembro de 2010

Is it?

Quero apenas cinco coisas..
Primeiro é o amor sem fim
A segunda é ver o outono
A terceira é o grave inverno
Em quarto lugar o verão
A quinta coisa são teus olhos
Não quero dormir sem teus olhos.
Não quero ser... sem que me olhes.
Abro mão da primavera para que continues me olhando.


Pablo Neruda

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Quero-te

Apaixonas-me, cegas-me, inventas-me, enlouqueces-me, atrapalhas-me, confundes-me, baralhas-me, entristeces-me, enraiveces-me. Amas-me. Eu amo-te.
Quero-te tanto que exclamo para que sejas ar, céu, terra, mar. Para que tudo em que toque tenha o teu cheiro, para que tudo que me rodeia seja a tua pele, para que tudo aquilo em que caminho sejam os teus cabelos. Anseio para que toda a minha vida dependa de ti, e por isso, odeio-te. Odeio-te porque quando fecho os olhos tu já não existes no que vejo e passas a existir no que não vejo, odeio-te porque quando não estou a dormir sonho contigo eternamente, e quando durmo, continuo a sonhar. Odeio-te por fazeres de mim alguém diferente e inexplicavelmente maravilhoso. Odeio-te por fazeres parte de mim, por arrancares pedaços da matéria de que sou e os guardares só para ti a sete chaves de ouro e fogo, sem uma única partilha. Odeio-te porque na verdade, não te tenho, porque não estás aqui, e odeio-te quando estás. Odeio-te porque existes. Amo-te.
Contigo, com os teus lábios, não consigo respirar, sufocam-me, deixam-me inconsciente. Não sei viver sem ti, nessa tua ausência tão demorada. Queres matar-me com as tuas mãos, num abraço que me asfixia, queres envolver-me no teu perfume, queres infectar-me com a tua voz, apunhalar-me com o teu toque. Mata-me de vez porque sem ti já não sei delinear qualquer essência que me prenda e me faça reclusa. Porque quando se faz noite preparo os meus lábios e eles já não sentem nada, porque quando reclamo o teu nome em prosa vulgar tu não lhe respondes, e mesmo com a poesia elaborada, ouço apenas o silêncio a tentar tomar o teu lugar, que se torna cada vez maior e mais vazio, que está cada vez mais frio e faz pairar a tua figura, sempre mais esbatida do que no dia anterior.
Amo-te, porque tudo em ti faz parte de mim, tudo aquilo que te rodeia faz parte do meu mundo, pois o nosso mundo é exactamente o mesmo, idêntico em tudo, em todos, completamente igual. Amo-te porque ao teu lado sou melhor do que sem ti, amo-te porque aquilo que sinto por ti é capaz de quebrar correntes de oceanos, cravar sulcos nos continentes, abrir fendas no ar até ao vazio, e amo-te porque o meu sentimento por ti é inquestionavelmente mutável de dia para dia. Por tudo isto te continuo a odiar, persistentemente.
O quanto desejo que me arrastes pelo chão, que me abraces com tanta força até que o mundo inteiro desapareça e colapse num ponto, ficando só eu e tu, para que me assassines em paz e solidão. Quero-te, odeio-te, desejo-te, anseio-te, amo-te, porque até o chão grita de prazer à tua passagem, até o ar vibra com a tua voz, até o mar te evoca quando te ausentas, até a chuva te quer tocar para sentir a tua aura. E isso mata-me, tu matas-me: sentes o sangue a escorrer, e o êxtase, e o medo que é inimigo, e a adrenalina a correr-te pela epiderme, e aquela sensação agradável que percorre todo o teu sistema nervoso e te faz tremer e parar no tempo para te ofereceres às delícias da luxúria e da tentação; e sentes-te bem.
Dá-me a tua alma para poder matá-la também.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

How to love a woman

“You may not be her first, her last, or her only. She loved before she may love again. But if she loves you now, what else matters? She’s not perfect - you aren’t either, and the two of you may never be perfect together but if she can make you laugh, cause you to think twice, and admit to being human and making mistakes, hold onto her and give her the most you can. She may not be thinking about you every second of the day, but she will give you a part of her that she knows you can break - her heart. So don’t hurt her, don’t change her, don’t analyze and don’t expect more than she can give. Smile when she makes you happy, let her know when she makes you mad, and miss her when she’s not there.”

Bob Marley

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Frágeis

Um impasse. A fragilização inconstante das palavras monótonas e magnetizadas, uma deteorização surreal dos suburbanos, na complacência desmedida em que nos deslocamos. E se tudo o que conhecemos hoje, tal e qual como se aparenta ser, mudar, de um dia para o outro? E se cada significado construtivo se destruir contraditoriamente ao que idealizamos? Doloroso é porém habitar no segredo dos “ses” e “mas” que revitalizam as dúvidas e nos apoquentam as inseguranças dos riscos que traçamos.
As palavras são cada vez mais um sinónimo de medo. Não só pela sua agressividade do tempo, ou pela forma como matam silenciosamente, mas sim pela manutenção coerente que requerem, como um carro, pela verbalização motivada que imploram, pelo sentimento violento que interrogam. As palavras são como as ilusões de óptica: têm sempre uma multiplicidade complexa de pontos de vista, os quais nunca sabemos se são, de facto, reais.
Um impulso. Uma verdade que não é verdade, um súbito raiar e um célere movimento transtornado. Mas, e o que acontece quando nos apercebemos de que a própria verdade já caiu em desuso? Existem os cépticos, ou os dogmáticos. Os crentes, os ateus, os agnósticos. Existe o plausível, o provável, existe sobretudo, aquilo que é biodegradável. Existem sempre dois ou mais cumes, entre os quais é quase impossível deliberar.
Assim, as palavras quebram, as letras ficam gastas, no papel de quem as escreve, na língua de quem as cita, nos ouvidos de quem as absorve. As traduções são agora pouco verosímeis e atraiçoam-nos em qualquer momento. As interpretações são delicadas e por vezes manipuladas por quem as faz.
Já não somos o que éramos, e apesar de ninguém mudar nunca, estamos num carrossel fixo.

sábado, 10 de julho de 2010

Prioridade

E querias sentir aquilo que sentes diariamente com mais intensidade. E querias adivinhar qual a última voz que ouvias quando o mundo acabasse, a voz terna que ia dizer aquilo que sempre fora inefável. E um abraço que te envolvesse como só o algodão faz, um sopro verde que te levasse para longe, e uma caixa de lápis de cera para colorires o preto e branco dos rostos de horror, e uma ligadura que cobrisse todo o sangue. Querias a acetona para te descomprimir dos desgostos e o amoníaco para eliminar os pesadelos.
Querias largar as prioridades e recorrer somente às opções. Depois pensaste que a única opção era esquecer. E quando de facto esqueceste, percebeste que tinha sido essa a tua prioridade.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Fazes-me falta

Como sabes eu vivo de relâmpagos; contigo partilhei uma trovoada um pouco mais longa do que o habitual. Foi apenas isso. De qualquer modo, a morte espreita sobre todos os prazeres dessa cronologia a que nos agarramos para escapar ao tempo. O que somos para além do que vamos sendo? O meu além eras tu- íman da minha íntima, impessoal temporalidade. Redenção dos males que me amputaram. Tu. (...) Feliz por estar ao teu lado outra vez. Ao lado dessa que já estava morta um bom par de anos antes de tu morreres. Fazes-me falta. Mas a vida não é mais do que uma sucessão de faltas que nos animam. A tua morte alivia-me do medo de morrer. Contigo fora de jogo, diminui o interesse da parada. E se tu morreste, também eu serei capaz de morrer, sem que as ondas nem o céu nem o silêncio se transtornem. Cair em ti, cada vez mais longe da mísera ficção de mim.

Inês Pedrosa

sábado, 19 de junho de 2010

Em homenagem

Digo desde já que para mim, o Memorial ficou órfão. A partir de um homem que era ateu e comunista, até um escritor que talvez não o fosse tanto como afirmava, mas que primava no seu carácter visionário e vanguardista. Não digo foi, porque ainda o é, vai sempre ser, como tal: é sem dúvida um dos melhores, senão o melhor, autor português, que ousou carregar às costas a língua portuguesa até lugares que seriam provavelmente inimagináveis. Começando na coragem e irreverência, terminando na criatividade e mentalidade, acho que a melhor homenagem que se pode fazer a alguém assim é continuar a citar os seus quadros de letras.
"Não digamos, Amanhã farei, porque o mais certo é estarmos cansados amanhã, digamos antes, Depois de amanhã, sempre teremos um dia de intervalo para mudar de opinião e projecto, porém ainda mais prudente seria dizer, um dia deciderei quando será o dia de dizer depois de amanhã, e talvez um dia preciso, se a morte definidora vier antes desobrigar-me do compromisso, que essa, sim, é a pior coisa do mundo, o compromisso, liberdade que a nós próprios negámos..." 
 José Saramago

Ambíguos

Eu acordo e observo-te nessa tua delineação megera de fases, nessa reflexão intrometida de um corpo que não se mede por palmos. A tua respiração, que me mata ao de leve. O som dos lençóis a enxugarem a tua pele e o piar dos pássaros lá fora, que fazem com que o nosso quarto se esvazie do silêncio.
Levanto os olhos sobre a secretária e busco aquilo que não tenho. Tu ainda dormes e o dia ainda é juvenil, a minha aura ainda não despertou e apenas a minha capacidade tumultuosa e despercebida de interpretação e análise está de vigília. O pôr os pés no chão frio arrepia-me a espinha e cada passo é como um desvio para o sítio que não conhecemos. O morticínio incessante que arrastas na tua boca é o que me enlouquece, a tua própria quietação é que me leva a um estado de dura necessidade desnecessária de ti. Os tapetes deslizam sob mim e o chão vai quase como que se abrindo pelo buraco do nada. Nas gavetas, as minhas memórias literárias, que já nem reconheço. São de alguém diferente, que se dissipou com a brisa do contra-relógio. São somente os restos dos eus perdidos nas meras cartas sem assunto, representações iluminadas de uma realidade que, como o todo que é mutável, deixou de o ser. Tu também o és, como minha metade incompleta que desenhas no estrado do quarto. Cada um guarda em si uma multiplicidade inequívoca de personalidades rasgadas, erodidas pelo tempo e pela distância que se percorre, pela cultura em que se insere e que protagoniza, pelas pessoas que partilha, pelas tarefas que conclui. 
Estou em pedaços e tu salvas-me. Eu caio e ofereces a mão. Simplificas, eu complico. Multiplicas, eu divido. Eu sonho, tu realizas. Eu discurso, enquanto tu ouves. Cantas, eu componho. Desenhas, eu escrevo. Eu sou duas, juntos somos quatro e o nosso choque é desmedido. Fazes parte, eu sou parte. Somos dois e somos milhares. Somos aquilo que não sabemos e vamos acabar precisamente onde não queremos.
Agora desperta, as estrelas chamam.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Tupac

I believe that everything you do bad comes back to you. So everything that I do that's bad, I'm going to suffer for it. But in my heart, I believe what I'm doing... is right. So I feel like I 'm going to heaven. I think heaven is just when you sleep, you sleep with a good conscience, you don't have nightmares. Hell is when you sleep, the last thing you see is all the f*cked up things you did in your life and you just see it over and over again, cause you don't burn. If that's the case, it's hell on earth cause bullets burn.
Tupac Shakur

domingo, 13 de junho de 2010

Caminhos

Caminhos. Caminhos que cada um toma no percurso letal da morte. Tudo o que nasce, morre, logo, a vida é consequentemente a morte implícita do próprio ser. Alguém dizia um dia que todas as acções são feitas com um fim à vista, com uma miragem final que justifica todos os meios usados. Analisando assim, a vida não passa de um meio, que começa no nascimento e tem meta na morte, que corta todos os males e todos os pecados cruzados e trilhados. Não explica mas finaliza, e é, portanto, uma justificação inata.
O percurso trilhado, esse sim é decisivo na morte tomada, na hora, no local e no acto de chegada do nosso novo ponto de partida. O implacável ser que concretizamos deve ser o único capaz de deliberar acertadamente acerca do caminho a escolher. Quer se escolha o caminho de pedras, o caminho de areia, o caminho marítimo, o caminho do alcatrão, quer se estagne num qualquer cimento sem saber o próximo trecho, quer se monte tenda numa encruzilhada mortífera. Daí nunca se poder julgar sobre o caminho que cada um escolhe, pois, claramente, cada um saberá julgar o seu próprio caminho. Cada um será dono e senhor dos seus passos, sabendo sentar-se na tribuna a olhar a sua própria dor e renúncia. Uma coisa será sem dúvida tu achares que estás no caminho certo, outra coisa é estancares no teu caminho a mirar as passadas de outrem, achando que esse tal está errado, pois o teu caminho é o único com saída.
Mas os caminhos são diferentes, não fossem assim existir duas ruas que terminam no mesmo ponto. A coragem, essa sim destina os passos errados que são percutidos. É preciso essa bravura de alma para impregnar o corpo nas derrotas, nos desânimos, nas decepções, nas angústias que se passam a transportar enquanto se prossegue a caminhada. As alegrias vêm no bolso, pequenas e desatinadas, apenas para arrastarem o ânimo que vem de reboque, enquanto que as misérias e as dores são levadas nas costas, doloridas e concentradas, especiosas ferramentas que anunciam a estrada subsequente.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Somos todos diferentes

Que somos todos diferentes, é um axioma da nossa naturalidade. Só nos parecemos de longe, na proporção, portanto, em que não somos nós. A vida é, por isso, para os indefinidos; só podem conviver os que que nunca se definem, e são, um e outro, ninguéns.
Cada um de nós é dois, e quando duas pessoas se encontram, se aproximam, se ligam, é raro que as quatro possam estar de acordo. O homem que sonha em cada homem que age, se tantas vezes se malquista com o homem que age, como não se malquistará com o homem que age e o homem que sonha no Outro?
Somos forças porque somos vidas. Cada um de nós tende para si próprio com escala pelos outros. Se temos por nós mesmos o respeito de nos acharmos interessantes (...) Toda a aproximação é um conflito. O outro é sempre o obstáculo para quem procura. Só quem não procura é feliz; porque só quem não busca, encontra, visto que quem não procura já tem, e já ter, seja o que for, é ser feliz, como não pensar é a parte melhor de ser rico.
Olho para ti, dentro de mim, noiva suposta, e já nos desavimos antes de existires. O meu hábito de sonhar claro dá-me uma noção justa da realidade. Quem sonha de mais precisa de dar realidade ao sonho. Quem dá realidade ao sonho tem que dar ao sonho o equilíbrio da realidade. Quem dá ao sonho o equilíbrio da realidade, sofre da realidade de sonhar tanto como da realidade da vida e do irreal do sonho como do sentir a vida irreal.
Estou-te esperando, em devaneio, no nosso quarto com duas portas, e sonho-te vindo e no meu sonho entras até mim pela porta da direita; se, quando entras, entras pela porta da esquerda, há já uma diferença entre ti e o meu sonho. Toda a tragédia humana está neste pequeno exemplo de como aqueles com quem pensamos nunca são aqueles em quem pensamos.
Fernando Pessoa

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Generalizar

Estou cansada de histórias de amor, de amar, de gostar, de uma maneira esteriotipada que todos pensam estar correcta. Pura e simplesmente por acharem que aquela é a maneira mais certa de gostar. Mas gostar não tem sequer uma gota de pensar. Gostar não tem nexo, não tem lógica, sentido. Não se gosta uma vez por semana, nem até às onze da noite, não se gosta no campo ou na cidade. Gosta-se, unicamente, sem lugares, sem horas, sem dias, sem compromissos marcados. Gostar é apenas uma submissão do inconsciente a um misto de sentimentos atrelados que não se explicam nem se fazem explicar.
Argumentos e justificações são irremediavelmente dispensáveis neste assunto. Só tentamos arranjá-los precisamente por odiarmos francamente a ideia de não termos controlo sobre aquilo que sentimos. Tudo aquilo que não podemos adiar ou segurar na palma das mãos é negado e arrebatado, na esperança de conseguir mudar os factos que são, por si só, imutáveis.
O amor pode ser mesmo assim. Diferente de todos, irreverente, sendo cada caso cada vez mais original que o seu anterior. Mas o sentimento em si, só cada um sabe o quanto ele se aproxima ou não de uma verdade individual, que não deve ser generalizada, como se de uma premissa universal se tratasse. Essa verdade, tão puritana e tão débil, não se copia, não se divide, ninguém a leva e ninguém a traz. Cada um tem de a descobrir, de lhe tirar o lençol do medo de cima, sozinho.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Momentos

Duas pessoas

Duas pessoas vão ser sempre, seja por que meio for, duas pessoas. E jamais nos passaria pela cabeça, estarmos no centro de uma relação, e, ousarmos pensar desta maneira. “Duas pessoas são um casal, um par, ponto final, parágrafo.” Mas infelizmente existem sempre pequenas anotações que, apesar de evitarmos confrontá-las, terminam impossíveis de serem tocadas. Duas pessoas são sempre duas individuais pessoas, sejam elas quais forem ou tenham elas ou não decidido passar o resto da vida juntas. Até podem decidir, e daí? É por isso que vamos saber de tudo acerca um do outro? Não… não é nem vai ser, por muito que desejássemos que assim fosse.
Tudo tem sempre uma gruta, uma fenda, um buraco de uma fechadura onde já nenhuma chave encaixa. As pessoas são assim. Cada indivíduo remete para si pequenos e grandes segredos que não vai partilhar nunca com ninguém, aconteça o que acontecer. E para além de ser impróprio e inadequado, também nunca ninguém tem a coragem para tentar delinear esses segredos, para limar a aresta da chave que completa esse vazio. Porque na verdade é somente isso que permanece: um vazio. Um vazio incompreendido e impenetrável, um aglomerado de consequências, de características que são inexequíveis.
Uma delas será, sem hesitação, o receio que tenho em relação a ti, que eu sei perfeitamente que não compreendes e que nunca vais compreender, que talvez nem tenhas noção do quão grande é, que eu própria não sei ditar e que me faz colocar o pé atrás sempre que algo desata entre nós. O mais absurdo de toda esta história é que continua a ter a sua derradeira dose de pontos altos, continua a acarretar cada vez mais sentimentos, sem se preocupar minimamente com o ridículo da nossa falta de confiança e de cumplicidade. Falta-nos ser aquilo que não somos e quebrar todos os mitos juntos. Falta-nos sair da rotina abruptamente e desfalecer as memórias para corromper nas vivências futuras. Falta-nos ir até à praia correr na areia e falta-nos molhar os sapatos nas poças da chuva, carecem todas essas necessidades e todas essas lamechices próprias da época.
Sou uma extrema egoísta, eu sei, porque estou a pensar somente em mim, naquilo que ouço, que recordo, e às vezes, muito frequentemente, até esqueço que possivelmente também tu tenhas as tuas dúvidas, mais ou menos sérias, que não deixam de ser razoáveis, relevantes e decisivas. Mas é impraticável tirar da cabeça essa indecisão, e infelizmente, é facto certo que não vou esquecer aquilo que sei tão facilmente, e quando algo acontecer, vai estar sempre na minha mente, por mais que tente bani-lo. Quando isso suceder, vou atirar-te tudo à cara, vou mostrar-me descontente, vou mover mundos e fundos, vou, provavelmente, dizer que te amo às vezes para esconder o facto de te amar sempre.
Vou pedir para sermos um casal, mas ambos sabemos que nunca vamos passar de duas meras e singelas pessoas. Tão simples quanto isso.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Volta

E você me olha com essa carinha banal de "me espera só mais um pouquinho". Querendo me congelar enquanto você confere pela centésima vez se não tem mesmo nenhuma mulher melhor do que eu. E sempre volta.

Tati Bernardi

domingo, 30 de maio de 2010

Remember it

Just remember, the same as a spectacular Vogue magazine, remember that no matter how close you follow the jumps: Continued on page whatever. No matter how careful you are, there's going to be the sense you missed something, the collapsed feeling under your skin that you didn't experience it all. There's that fallen heart feeling that you rushed right through the moments where you should've been paying attention. Well, get used to that feeling. That's how your whole life will feel some day. This is all practice. None of this matters. We're just warming up.


 Chuck Palahniuk

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Cores

Correu como se não existisse o amanhã. Tirou os sapatos e andou descalça. Soltou o cabelo e mergulhou no oceano em pleno Inverno, correu pela areia gelada, escorregou nas rochas, fitou as gaivotas, sentiu a chuva miudinha a deslizar pelas maçãs do rosto. Queria abraçar-se a si própria, sozinha mas envolvida num contentamento excessivo, num misto de rodeios e de certezas que agora a enchiam da cabeça aos pés. Tudo isto porque alguém lhe dissera que o amor era vermelho. Mas ela, irreverente e incontornável, radicalizou persistentemente as suas ideias, e nada nem ninguém lhe poderia negar que o amor não era vermelho, ou azul, ou verde, mas sim de uma cor mais particular e possivelmente desconhecida de que se pintam os olhos das pessoas que amamos.
Esta ideia nunca mais iria desvanecer, pois pela primeira vez, alguma coisa demonstrava significado.


Live with me

By the light of dawn,
A midnight blue ... day and night...
I've been missing you,
I've been thinking about you, baby.
Almost makes me crazy,
Come and live with me.

Either way, Win or Lose,
When you're born into trouble,
You live the blues,
I've been thinking about you, baby.
See it almost makes me crazy

Times, Nothing's right, if you ain't here
I'll give all that I have, just to keep you near
I wrote you a letter, I tried to, make it clear
You just don't believe that i'm sincere
I've been thinking about you, baby.


quinta-feira, 6 de maio de 2010

O que não somos

Corremos.
Sonhamos. Desesperamos.
Divagamos. Esperamos. Tentamos. Imediatamente, vivemos. Somos. Pensamos. Descarrilamos.
Somos agora algo que nunca imaginamos que podíamos vir a ser. E talvez nunca soubéssemos o que algum dia seríamos. Estamos parados. A pensar. Observamos. Tentamos recapitular, outras vezes, avançar. Olhamos para a pequena parte de mundo que éramos e comparamos com o mundo que somos. Vemos a diferença, o céu e o mar.
Agachamo-nos, abrimos a palma da mão e colocamo-la no solo. Com força e determinação, enchemos a mesma com um punhado de terra, tão doce e tão sólido como nada que o possa ser. Não tem só terra, reparamos nós. Tem o sal, tem o vivo, tem o morto, e tem o que está no meio. Tem o vazio e tem o cheio, e tem-nos também a nós.
Achamos que estamos sozinhos, mas enganamo-nos. Achamos que somos únicos, falta-nos, porém, recordar que não estamos no centro da matéria. Para isso pensamos. Pensamos apenas pela forte maneira que isso traz de mentirmos a nós mesmos: é tão aprazível que nem nos lembramos de como frequentemente o fazemos. Queremos ser pintores e vemos figuras no céu. Queremos ser poetas, e sonhamos com as palavras. Experimentamos as rimas, somamos as sílabas, treinamos os tons. Como é bom fingir. Como é bom pensar que seria óptimo mas que se fica apenas pelo bom. Como é saudável fingirmos ser a dor que sentimos de verdade. E como é extraordinariamente reconfortante saudarmos a nossa alma com pequenos brinquedos de falsidade para apenas nos sentirmos maiores. Mas somos tão pequenos, tão redondos, tão fatigantes, tão irritantes, tão aborrecidos, tão insossos, tão tudo com nada. Tão manipuladores de nós mesmos, tão intrigantes, ao ponto de nos convertermos na dor que não somos mas que sentimos ser apenas para nos sentirmos mais vivos do que o pouco que estamos.
Nas nossas cabeças, descoordenadas, descobrimos vozes, diferentes, iguais, que dizem sim, não, que nos levam em frente e que nos puxam para trás. Mas somos livres, e nada nem ninguém nos pode conduzir à verdade. A verdade de cada um é a mentira do mundo. A mentira do mundo não é mais do que a mentira de muitos, a verdade de poucos e o não sei de alguns.
Agora soltamos, libertamos, deixamos a terra que apanhamos cair lentamente pelo entre dedos e pelas condutas da palma da mão. E ela, tal como nós, tem os milagres fenomenais, tem a água, tem a luz, tem raízes, tem folhas, e tem-nos. Como os rios, tem animais, mortos, vivos, a flutuarem, tem correntes e tem marés, e tem altos e baixos. Tem as pedras do destino assim como nós temos o pó nos sapatos. Tem vontade, de tudo, tem contorno, em tudo, tem limites, para tudo.
Damos o passo em frente e esquecemos o momento. Agora somos vida, basta!
Como se nada se tivesse ultrapassado em nosso diante, retomamos. Revivemos, esquecemos e desprezamos estes pensamentos de tal forma inúteis que ao serem quebrados por todos fazem com que os mesmos de sempre avancem com as suas guerras. E as mentalidades continuam estagnadas. Tradicional fim.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Sociedade corrompida

Dou por mim a navegar num terreno infindável de mentiras, desgostos, omissões e partituras inacabadas em relatos mal fundados. E, quando dou por mim assim, fico descoordenada como nos dias de hoje, sob o bafejar do alcatrão agoniante e desintegrante que se questiona e me faz questionar não só o meu eu como também o eu alheio.
Se abraçarmos a nossa imagem no espelho nunca vamos conseguir absorver dela tanto quanto ela absorve de nós. O que ela nos suga é mais do que tudo, e aquilo que dizemos ser nosso passa a estar na guarida de um retrato que, à primeira vista, nunca será letal. Mas é, pois esse retrato esconde todos os podres, nus, crus e, pior de tudo, verdadeiros. E é esse retrato, que quando nos apanha em conjunto, detecta cada réstia de vergonha que a comunidade humana tem vindo a carregar ao longo dos anos.
A verdade é mesmo essa: quando menos esperamos já estamos nós sofregamente afundados na teia de mentiras em que se tornou a sociedade. O meu ponto de vista realista e totalmente descrente no surrealismo não me permite olhar para as coisas de outra maneira que não seja esta. Estamos, literalmente e objectivamente, todos nós ligados a pequenos elos de corrupçõezinhas aparentemente nunca malignas e que nos degolam aos poucos sem sequer nos apercebermos. Para mim, que venero as sátiras e entro em pacífico delírio com a ironia e veracidade que essas carregam, prendo-me à ideia de que esta nossa aldeia global já nos aprisionou a todos a um esquema tão complexo e tão meticuloso de manipulação humanitária que chega a ser absurdo o simples facto de referir tal opinião. Todavia, não há um único ser humano que seja capaz de negligenciar este tipo de comentários ou que interprete de outra maneira que não seja esta tudo aquilo que os media nos apresentam, diariamente.
Deparamo-nos a todas as horas com notícias novidade, as conhecidas “última hora”, na berra e no precipício das mentes que as observam e que interrogam como tal é passível de crença. O mais pitoresco é ainda que, quando confrontadas, as pessoas sejam sempre capazes de atenuar mais um pouco aquilo que já os próprios meios de comunicação nos apresentam de forma incompleta. E não sejamos também hipócritas, isto é, não digamos que tal é recente e que só agora nos vemos frente a frente com dadas acusações, pois o mais provável é que, desde o mito de Adão e Eva, estes eventuais acontecimentos já existissem. Hoje em dia, somos quase como que bombardeados com televisões, revistas, jornais, etc, carregados de informação mortífera à manifestação saudável de uma sociedade. Governos, instituições, empresas, sindicatos, prezam impetuosamente por resguardos e controlos, imploram jocosamente por calma e sensatez em revoluções. A pergunta que coloco é: como podem tais organizações exigir atitudes imorais como estas de um povo que por elas foi arrastado para um seio de corrupção, ilegalidade e cobardia?

terça-feira, 4 de maio de 2010

Macbeth

To-morrow, and to-morrow, and to-morrow,
Creeps in this petty pace from day to day,
To the last syllable of recorded time;
And all our yesterdays have lighted fools
The way to dusty death. Out, out, brief candle!
Life's but a walking shadow, a poor player,
That struts and frets his hour upon the stage,
And then is heard no more. It is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifying nothing.
William Shakespeare

terça-feira, 27 de abril de 2010

Desertificado



Acordou com o silêncio. O despertador que insistira determinantemente para não tocar, os pássaros que já não cantavam com raiar do sol. Fez deslizar o braço até ao seu lado direito mas a busca do calor foi em vão. Só o frio do que está vazio se situava do outro lado da almofada, o que o fazia então despertar de vez.
Não foi preciso afastar as cortinas e abrir a janela para sentir o cheiro a chuva a tocar o alcatrão, não foi preciso ligar a televisão para se aperceber das tragédias do mundo num piscar de olhos. Estava tão preso a si que a realidade lhe caía no estômago como um copo de leite numa criança. O tacto regulava-se pelas singelas texturas que encontrava aqui e ali involuntariamente, num andar arrastado e peregrino de quem não vive e não sente sem propósito algum. Eis que o seu olhar, negro de luto, já nem esse se deslocava para onde quer que fosse. Tinha perdido tudo aquilo para que se acostumara a olhar. Qualquer meta antiga era agora destronada pelo desgosto e pela melancolia, pela sua dramatização fiel do mundo real que morava consigo.

Nem uma pista do seu corpo, daquela alma tão puritana que ele tanto estimava, como se fosse sua. E era, de facto.

Restavam uns aromas nos cantos da casa, uns perfumes asfixiantes nos bolsos das roupas, umas fotografias e umas pinturas rasgadas pela brisa do que foge. Sobravam os seus olhos mortiços e fustigados de quem perdeu para sempre o seu objecto de vício, olhos de quem guarda para sempre uma imagem inalterável de amor, de uma utopia arruinada, de um juramento manipulado, de uma dependência doentia. Ela prometera-lhe que nunca o ia deixar, mas deixou, e partiu para sempre, partindo e nunca voltando, abandonando as origens, sendo levada para o desconhecido profundo e magnético. Morrendo.

Na sua cabeça estava ainda a dormir, um sono num abismo terrível, um abismo infinito. Não sentia nada, nem os sons dos carros na rua, nem o cheiro a tarte no forno, nem o gato que se encostava aos seus pés.

A saudade daquele que perece é a saudade mais cruel de todas, pois é uma saudade que não se pode quebrar, que não se esquece. E ele sabia que iria ficar assim para todo o sempre, que não ia passar, dissessem os vocábulos que dissessem, só ele sentia, só ele era capaz de entender o que lhe amarrava o peito, o que lhe apertava o pescoço, o que lhe esmagava as ideias, o que lhe dava uma vontade de gritar até sangrar as cordas vocais. Apenas ele se caracterizava agora pela revolta e pela mágoa, por um deserto de sensações e emoções que teimavam em permanecer nele, em fazê-lo falecer também. Melhor assim, talvez, pensava.

Foi até ao espelho, olhou as suas próprias faces. Inacreditavelmente, estava a chorar e as lágrimas estremeciam-lhe a cara rosada com uma velocidade mirabolante sem que ele próprio as sentisse. Escorregou as costas pela parede cor de pêssego e sentou-se no chão de madeira ténue. Era ali que também ele queria adormecer, permanentemente.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

De novo, Hoje


Tenho segredos a revelar. Confissões que nunca fiz e possivelmente jamais farei. Ideias especulativas que nunca me atrevi a referir. Opiniões injustas que escondo espontânea e voluntariamente, críticas a apontar que guardo só para mim, medo de represálias e de olhares indiscretos.
Não espero que me ouçam ou que compreendam, nem tenciono sequer contar aquilo que há muito mantenho em mim. Estou certa de que metade não é passível de interpretação alheia e de que apenas eu tenho a chave para o cofre, o código para decifrar as minhas mensagens. Não fico contente se me perceberem e espero o contrário de quem bem me conhece. Dispenso o sentimento mortiço de compaixão e relevo para o infinito incomensurável todas as frases depreciativas que possam surgir por hoje. Pois o hoje é só meu e estou a pensar afogar por completo as críticas, não que estas não sejam, quando aceites, a pura e única salvação do mundo, porque são, mas sim porque a frieza do momento não me permite avaliá-las quantitativamente. E o momento pede calma e reflexão, resmunga por perdão e perde-se indefinidamente nos meus pensamentos, moldados à minha maneira.
Vou soltar as rédias de um dia finito que já acabou, vou entrar no meu círculo, vou participar no jogo, vou sacudir os percalços, abalar o inabalável. E como o hoje é meu, e o amanhã é incerto, hoje fico-me pelos dias que passaram e perco-me no desvendar do futuro, no mistério dos dias que daqui passarão. E como hoje sou uma pessoa diferente, sei que amanhã o meu temperamento pode alternar. E tal como a lua, não tenho uma fase certa sem que para isso recorra à função matemática das probabilidades.
Vou andar descalça, vou soltar o cabelo, excarcerar os mártires e porventura, descativar as vontades. Desperdiço a vida com afirmações de que tenho de iniciar um novo ciclo, redesenhar uma etapa singular com mais ilustrações, nunca o faço. Vou rezar para que aconteça hoje.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Mantém-te original

Attitude


The longer I live, the more I realize the impact of attitude on life. Attitude to me is more important than facts. It is more important than the past, than education, than money, than circumstances, than failures, than success, than what other people think or say or do. It is more important than appearance, gift, or skill. It will make or break a company...a church...a home. The remarkable thing is we have a choice every day regarding the attitude we will embrace for that day. We cannot change our past... we cannot change the fact that people will act in a certain way. We cannot change the inevitable. The only thing we can do is play on the string we have, and that is our attitude. I am convinced that life is 10 percent what happens to me and 90 percent how I react to it. And so it is with you... we are in charge of our attitudes.


Charles Swindoll

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Delírio


Sento-me aqui e simplesmente dou por mim a pensar no absurdo que é escrever. Estou aqui meia parada no tempo, meia avançada no futuro e ligeiramente retida no passado, numa escala de zeros, enquanto podia sair com amigos, dançar, passear. Mas a verdade é que opto sempre por levitar num círculo muito meu, muito à parte do que é real, para me comprometer com as palavras que não são ditas em diálogo quotidiano. Juro e julgo que por vezes sinto que é mesmo ridículo desperdiçar tanto do meu tempo nisto, e ao mesmo tempo, sabe tão bem e desocupa-me a mente como mais nada nem mais ninguém o conseguiria fazer. Afigura-se como uma espécie de loucura ou capricho, um devaneio premeditado, um tipo abstracto de esquizofrenia, como se duas pessoas crescessem em mim e apenas uma se expressasse aqui, como se essa mesma vivesse as experiências de outra maneira, por outros pontos de vista, com outras emoções. Talvez seja por isso que sinto tanto e de modo tão forte tudo o que me cerca. É estranho de uma forma positiva, engraçado de uma forma negativa e inexplicavelmente contagiante, que deleita e concretiza. E assim como naquilo que escrevo, também em mim mesma existe uma parte subterrânea incansável, inexplorável, um mistério que não se sabe se é fidedigno e que nunca se consegue transmitir por completo pois denota problemas de expressão gravíssimos. Penso que é isso a essência da criação, a parte principal das obras de arte, a letra fundamental do abismo dos derradeiros pensamentos e sensações. Tudo aquilo que não se percebe é tudo aquilo que mais nos atrai.
Como uma doença: fechar-me no quarto a escrever, perder parte de mim em cada vocábulo, colocar um sentimento em cada sílaba, isso não é enlouquecer? Criar paradigmas em redor de tudo aquilo que penso merecer crítica, tornar heterodoxo aquilo que a sociedade considera correcto e praticamente sem falhas, não é perfeita loucura? E loucura não é, de certo modo, quebrar as regras, saltar as vedações, cruzar os limites, sair do contexto do “normal”? Sair dessa dada normalidade, combater todas essas legislações impostas e exigidas implora uma certa e demasiada coragem, segurança, ausência de medos, portanto, a loucura é um instrumento de vencedores, uma ferramenta de soldados em campo de guerra. No entanto, quem escreve acaba por não ser tão corajoso como queria, pelo contrário, quem escreve finge, quem escreve não actua, não confronta, não simplifica. Quem escreve não é louco pois detêm em si uma quantidade de sanidade que é mais que suficiente para deter e controlar toda a loucura em si existente. Quem escreve, tal como eu, tal como todos, quer se passe ou não a ideologia para uma folha de papel, ainda detém em si demasiados sonhos que acarretam demasiados medos, demasiados pontos fracos, demasiadas lágrimas, múltiplas impossibilidades, inúmeras fraquezas que são, para já, indestrutíveis. Quem escreve, quem pensa, quem sonha, é somente dono de um delírio planeado.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Virtude e (In)certeza


Os baús, as caixas de música, os papéis de embrulho, os laços coloridos, as telas escuras, os pincéis molhados, os cadernos de história, os lápis de cera, os instrumentos de trabalho do quotidiano que sublimam emotivamente os nossos pequenos segredos individuais que nem nós próprios estamos por vezes capacitados para decifrar.
Os dons e talentos, que se revelam nestes segredos e se escondem na aparência da vida, sempre tão subestimados por todos que não os reconhecem. Já é usual a virtude ser rasgada a meio pelo pecado e pelo vício que a engolem na sede da fortuna e da fama.
Virtude já não se usa hoje em dia. Caiu tão em desuso como a boa educação. A balança fica então tão leve quanto vazia, esquece-se o elevador que a trouxe e é atirada a proeza pela janela. Deixam-se decisões ao abrigo e suporte da nossa racionalidade certa, que às vezes nos ajuda mais do que a nossa sensibilidade insegura e mutável, porque às vezes é preferível fazer menos do que mais, deixar as coisas seguirem a vontade do acaso em vez de serem conquistadas e lideradas pela nossa própria sede de poder. Isto porque há realmente esperanças e desejos que são autênticas loucuras para se ter quando governadas nas nossas mãos.
A partir de hoje deixo a sorte levar o seu rumo e o meu, pois pelo menos ela eu sei que a não posso prever, como prevejo hoje tão bem as pessoas e comportamentos respectivos. Pelo menos a sorte e o acaso não tem dias de manifesto ou greves marcadas, coração leviano ou cabeça imatura. Pelo menos com ela a única e derradeira certeza que tenho é que certezas não existem nunca mais.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Cold Desert


I'm on the corner waiting for a light to come on
That's when i know that you're alone
It's cold in the desert, water never sees the ground
Special ones walk on without sound

Told me you love me, that i'd never die alone
Hand over your heart, let's go on
Everyone knowed it, everyone has seen the signs
I've always been known to cross lines

I never ever cried when i was feeling down
I've always been scared of the sound
Jesus don't love me, no one ever carried my load
I'm too young to feel this old
Nobody knows
Nobody sees
Nobody but me

Ainda


Ainda desejo a possessividade do tempo nas minhas mãos. Ainda desejo ser dona dele para não deixar que mais ninguém lhe toque. Ainda desejo aqueles dias de praia e de sol enternecedor, aquela areia quente e salgada a colar-se na pele. Ainda desejo acordar e não ter de lamber as feridas com sabor a mar que tanto sangue já me fizeram perder. Ainda desejo que tudo isto seja uma falta de reconhecimento, um erro meu de não discernir o sonho da vígilia, desejo que esteja agora a dormir e que este texto não seja mais de que um mero delírio. Se o não for, é porque os arranhões que vejo ao espelho, espalhados por todo o meu corpo são mesmo o fruto dos nosso actos irresponsáveis e inimagináveis que temos vindo a cometer desde que tudo se quebrou entre nós. Para além disto, ainda desejo perdidamente conseguir perdoar-te com todas as minhas forças, mas não consigo e exijo igualmente um teu perdoar por te guardar estes pequenos apontamentos rancorosos e de ódio, que são tão feios e vergonhosos, que me fazem tapar a cara quando passo por ti, fugir dos teus lugares e esconder-me dos teus massacres. Ainda desejo trocar o amor que se foi por um amor renovado por ambos e repensado nos menores dos detalhes. Ainda sonho com os meus próprios sonhos entre mim e ti que de realidade passaram para tristeza e de tristeza se tranformaram em vingança. Ainda desejo muito mostrar-te que consigo subir os rochedos mais altos sem que me dês a mão, que sou capaz de passar notavelmente nas provas mais difíceis sem ter de olhar para o teu formulário.
Mais importante de tudo é que ainda desejo mostrar-te o quanto te conheço e o quanto esse conhecimento não se perdeu na superioridade dos meses e na vastidão da distância e do sentimento que nos aparta.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Irreversível


Irreversibilidade não existe. Irreversibilidade é aquilo em que passamos a acreditar quando desistimos de algo. A escassez de esperança e as lacunas de coragem que crescem assemelham-se a uma falta de poder inalcançável que nos leva certamente a pensar que o que está feito não se pode anular. Mas não é bem assim. Se pensarmos mais e melhor na questão, podemos anular tudo, podemos alterar todas as situações e convertê-las de modo a que se desloquem a nosso favor novamente. É claro que não o faremos de forma singela e regular, muito menos fácil e leviana. Leva tempo, leva tempo, esforço e sobretudo uma vontade tremenda de continuar com a maré para o nosso lado. Se não remarmos o suficiente é lógico e previsível que a meta não vá chegar até nós sozinha: se não batalharmos por ela só sairemos vitoriosos se os oponentes se derem como vencidos, ou então morremos em campo, sozinhos e despedaçados. Quem estiver à espera desta última hipótese positiva, vai dar o seu luto tal e qual como deu o seu nascimento.
A paciência é um dom reajustável e raríssimo, díficil de encontrar, por isso temos hoje tanta “irreversibilidade” lado-a-lado. A manipulação radical do tempo nestas alturas, nas alturas passadas e naquelas que virão, não é algo que se possa fazer ao de leve e que se compreenda à primeira. É necessária aquela pletora de delicadeza e de graciosidade que nos permite revelar o tempo no próprio tempo, desenrolá-lo, interpretá-lo e curá-lo pacientemente, sem ter pressa de chegar ao fim. E para quem pensa que é impossível fazer tal, enganam-se. O tempo é como uma superfície rugosa, incerta, não-paralela aos acontecimentos da vida, sem linhas e sem margens de orientação, sem réguas e sem esquadros. É oblíquo e descontínuo e não leva uma ordem ou um padrão certos. Cada pessoa tem a possibilidade de medir as suas próprias horas, diversificar os seus minutos e aproveitar todos os segundos como se fossem os últimos. O ínfimo túnel da paciência só se alarga quando começamos a fazer isto com consciência e sanidade, com atenção e minuciosidade, quando começamos a endireitar os riscos da vida e do mundo na linha do tempo, mesmo que para isso tenhamos de riscar, rasgar ou impregnar o que já lá foi descrito.
Por isso, para aqueles que usam a palavra irreversível mais do que uma vez ao dia, reparem que talvez a irreversibilidade crónica de que tratam não seja tanto isso como se pensaria que fosse, evidentemente. Essa irreversibilidade prática e traiçoeira que tanto transcrevem nas situações ao acaso aparenta-se mais com uma falta de vontade, coragem e fé para retroceder mentalmente na escala cronológica e segurá-la com as próprias mãos, enquanto os nossos e vossos e todos actos futuros a traçam de novo, numa folha branca e limpa, nunca antes utilizada.

Ayo

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Desassossego

Volvi os olhos para as costas do homem, janela por onde vi estes pensamentos.
A sensação era exactamente idêntica àquela que nos assalta perante alguém que dorme. Tudo o que dorme é criança de novo. Talvez porque no sono não se possa fazer mal, e se não dá conta da vida, o maior criminoso, o mais fechado egoísta é sagrado, por uma magia natural, enquanto dorme. Entre matar quem dorme e matar uma criança não conheço diferença que se sinta.
Ora as costas deste homem dormem. Todo ele, que caminha adiante de mim com passada igual à minha, dorme. Vai inconsciente. Vive inconsciente.
Dorme, porque todos dormimos. Toda a vida é um sonho. Ninguém sabe o que faz, ninguém sabe o que quer, ninguém sabe o que sabe. Dormimos a vida, eternas crianças do Destino. Por isso sinto, se penso com esta sensação, uma ternura informe e imensa por toda a humanidade infantil, por toda a vida social dormente, por todos, por tudo.
É um humanitarismo directo, sem conclusões nem propósitos, o que me assalta neste momento. Sofro uma ternura como se um deus visse. Vejo-os a todos através de uma compaixão de único consciente, os pobres diabos homens, o pobre diabo humanidade. O que está tudo isto a fazer aqui?
Todos os movimentos e intenções da vida, desde a simples vida dos pulmões até à construção de cidades e a fronteiração de impérios, considero-os como uma sonolência, coisas como sonhos ou repousos, passadas involuntariamente no intervalo entre uma realidade e outra realidade, entre um dia e outro dia do Absoluto. E, como alguém abstractamente materno, debruço-me de noite sobre os filhos maus como sobre os bons, comuns no sono em que são meus. Enterneço-me com uma largueza de coisa infinita.

Fernando Pessoa

Sem Sentidos


Às vezes tenho a sensação de que comecei tudo a meio, porque no início já quase nem aproveitei nada, ou então não tive nem oportunidade de dar algo de mim em retorno. Por vezes parece-me que só a meio da história é que começo a sentir e a viver com a qualidade que as coisas exigem de mim e delas mesmas. Outras vezes parece-me que estou sempre a mentir, que não digo nada certo, e que as minhas palavras deixaram de ter aquela lógica que lhes era tão característica. Parece que o que digo num dia ao ser sincera, posso estar a dizer no dia seguinte, a mentir. E sinto que me engano a mim mesma e, consequentemente, a tudo o que me cerca e engloba. Como se estivesse a perder tempo com coisas que não interessam a ninguém ou que então não têm razão de ser. Ou não me conheço ou já não sei o que faço, ou o meu coração se mistura com o meu cérebro ou o cérebro com o coração ou fico só confusa e baralhada e perco-me no meio da loucura e da certeza. Fundo-me completamente na noção de realidade, dou por mim a pairar num mundo que não corresponde ao meu, onde nada me agrada ou desagrada. É simplesmente irrelevante e insignificante, como se eu não fosse minimamente capaz de criar em mim uma opinião sobre algo e a justificar posteriormente, como se por momentos bem breves eu deixasse de funcionar. Um apagão total, uma escassez de sentimentos, um desligar de sentidos.
Como quando estou a fazer a cópia de um desenho em papel vegetal. Estou concentrada, estou a conseguir, as linhas batem certo, estão perfeitas, um som, um barulho, uma luz mais forte, falho a linha. Um milímetro de grafite desperdiçado um pouco para a direita do papel, em vez de se manter paralela à linha contínua que eu tanto preservava do lado oposto. Se calhar devia ter usado uma régua. Se calhar, mas, ou então, talvez… fica tudo tão relativo e o máximo que faço é sentir-me a desfalecer, uma vez que já não possuo qualquer tipo de base e qualquer contorno do que faço, digo, ou penso tem uma aparência despedaçada e inconectável.
Agora, agora sinto-me fria, sinto-me abstracta e incongruente como as peças de um puzzle velho com defeitos nos encaixes. Precisamente, será que já não encaixo? Que já não existe um lugar para mim algures? Todos me dizem que pareço tão livre, mas eu, eu sinto-me mais do que presa. Sinto-me sufocada.

domingo, 4 de abril de 2010

Novos Capítulos


Aquela corrente que carregava ao pescoço? Libertei-me. Aquele peso que transportava na coluna? Libertei-me. E a mala imaginária que arrastava para todo o lado? Agora deixo-a em casa todos os dias. Agora estou nua e é assim que vou ficar, é assim que me sinto mais livre: escolhi ficar assim, escolhi deixar a vida de antes e criar uma nova, desde o princípio.
Há dias na nossa vida em que deixamos de olhar para o momento seguinte e paramos num ponto decisivo. Nesse ponto só há duas opções: continuar a escrever na mesma página ou acrescentar um novo capítulo. Mas diga-se já de passagem que livros sem capítulos, sem mudanças de cenário, entradas de personagens e alterações no discurso não são lá muito apelativos. Contudo, acrescente-se também que para iniciar um novo capítulo são necessários recursos à parte. Para começar, precisa-se de mais papel, o que nem é muito mau, pior é a criatividade para o título, a mudança de tom que vamos ter de usar e o facto de não querermos parecer fúteis na nova etapa. E se quisermos ser mesmo originais, vamos precisar de outra caneta, com outra tinta, para continuar a escrever. Podemos alterar o tipo de letra, podemos pôr tudo a itálico ou a negrito, podemos fazer ilustrações. Tudo o que quisermos está ao nosso dispor.
Os livros são como as pessoas. Mas nas pessoas não são as canetas a escrever, são as experiências, e não se podem apagar ou riscar, às vezes não se podem sequer, escolher.

A Carta


Sol. Brisa leve. Outono. Folhas castanhas caídas pelo chão. Carros a passarem. Um pequeno parque, tradicional, bancos verdes, estragados pelo tempo, com pés de ferrugem e acentos cheios de maresia. As árvores fazem sombreado nos bancos e nos caminhos de terra pelo parque. Os bancos estão frios, o sol não chega para os atingir. Do outro lado o paredão, as bicas de água para os ciclistas e praiantes, os guarda-sóis que ali costumavam estar, que quase não deixam ver o mar, que já não habitam mais ali nesta época. E mesmo que habitassem, a maré está cheia e bem viva, vêem-se bem as ondas a rolarem a areia, agitadas, violentas como nunca e como sempre. É tarde demais, o ano já está a chegar ao fim e os praiantes são poucos ou nenhuns. Inteligentes esses poucos que não se deixam abater pela falta de sol e persistem no mergulho diário.
Do lado direito, frente a frente com o parque, de costas para o mar, um banco. Não é verde, é de pedra, é cinzento, é ainda mais frio. Ao lado, a paragem do autocarro, vazia, parece-me. É aí que ela chega, cheia de vida a correr na pele, mas com escassez da mesma nos olhos. Vem devagar a olhar o mar, a sentir o odor e a cumprimentar as senhoras gaivotas que ainda rezam por algum peixe na costa. Traz o brilho que faltava, que se dantes já era muito, agora simbolizava abundância. 
Sentou-se no banco de pedra a olhar as árvores do outro lado da rua. Fez um caminho de uma hora de casa até ali, gastou dinheiro em transportes só para ficar ali sentada durante ligeiros minutos, não é fascinante? Sabia-lhe bem estar ali, ali ninguém a conhecia, ali ninguém sabia o porquê de ela ali estar, o porquê de precisar daquele tempo, o porquê de todos os porquês que se interpunham mediaticamente na sua cabeça e que não lhe davam as dízimas de sossego de que tanto estava a precisar. «Férias longínquas, isso sim era uma óptima ideia», eram as palavras que ela concluía, todas as vezes que pensava. Os seus sentidos estavam ao rubro, mais atentos do que nunca, se calhar devia fazer uns exames, aquilo não era normal. Pulsação no auge, Respiração fugaz, um contraste para com os dias em que o coração mal se sente bater no seu peito.
Depois de já ter visto as folhas, os raios distintos de sol, as gotas de orvalho matinal que ainda ali permaneciam, levantou-se novamente, mas ficou ali, de pé, admirar a madrugada sonolenta. Tinha de ir, tinha de ir para casa, tinha de se sentar e escrever-lhe uma carta. Tinha de lhe pedir desculpa, de lhe dizer que o assunto ainda não estava resolvido, muito menos acabado, que as palavras de sangue frio não deviam jamais ser levadas a sério, que se arrepende muito e que quer voltar atrás, que não consegue viver assim, que está cansada e não sabe se consegue, ou quer, continuar.
Voltou costas ao banco, despediu-se do mar, acenou às árvores, correu o caminho de volta, apanhou um táxi, saiu à porta de casa, correu pela porta dentro, subiu a escadaria de rompante, empurrou a porta do quarto, trancou-se a sete chaves, rasgou as folhas dos cadernos, pegou na caneta, escreveu. Escreveu até não poder mais. Escreveu até ganhar feridas nos dedos. Escreveu até sentir que a alma já não estava em si, mas sim no papel. E depois disso, tirou o coração e colou-o na folha também. A caneta ficou sem tinta assim como ela que ficara agora vazia por dentro. Já não sentia nada de nada, só aquelas folhas que tinha na mão lhe activavam o tacto, mas mais nada a mantinha desperta.
E enviou a carta. Leu e releu, incontáveis vezes, o endereço e a identificação do destinatário, para que tivesse a certeza de que tudo estava devidamente corrigido, perceptível, certo, dentro dos parâmetros, para lhe dar a certeza de que ninguém se iria enganar na entrega, que tudo correria como planeado, que depois daquilo, o retorno era inevitável, ou não estaria ela a dar do seu próprio sangue numa carta a algo ou alguém por quem não tivera deveras a certeza dos seus actos. Estava ali a sua alma, a sua mente, os segredos, as confidências, as mágoas, o que não pode ser dito, lado a lado com tudo aquilo que se pode dizer, quase num pecado capital que já ninguém comete por ninguém.
Marco de Correio. Correio com urgência. Pessoas a passarem. Um bebé num carrinho, uma mãe cheia de sorrisos. Um ciclista cheio de suor e cansaço. A carta a escorregar por entre aquela entrada minúscula, a desaparecer por entre os seus dedos finos e delicados, porém magoados, após tanta escrita. Voltar para casa, não sentir nada, arrumar o quarto, sem sentir nada, almoço de família, sem saborear os alimentos, beber um copo de água e sentir que se está a flutuar no vazio.
Uma semana, duas. Um mês, dois, seis, oito meses. Um ano, um ano e meio. Três anos. O nada continua, não há resposta, nada foi retribuído, nada permanece, nada se restitui. Nada.
Ou se enganara no endereço, ou as palavras já não podem expressar sentimentos, almas e pensamentos, nunca irão recuperar o que foi perdido.
Se está perdido, não se recupera.

Melhores

“Even though we've changed and we're all finding our own place in the world, we all know that when the tears fall or the smile spreads across our face, we'll come to each other because no matter where this crazy world takes us, nothing will ever change so much to the point where we're not all still friends.”



Há coisas que não se esquecem, momentos que ficam para a história e pessoas para os acompanhar. Há pessoas e pessoas: aquelas que visitam a nossa vida periodicamente, perguntam "Tudo bem? Já não sabia nada de ti há algum tempo..." e depois voltam a desaparecer por etapas; aquelas que passam uma vez, acendem as velas do nosso quarto, iluminam o nosso caminho, mas apagam-no de seguida, sem darem tempo para descobrir a essência delas mesmas; aquelas que passam e nem sequer chegam a acender as velas; as mais constrangedoras, que passam, acendem as velas, iluminam, apagam as velas, acendem de novo, voltam a apagar, deitam-se na cama, mexem nas nossas gavetas e de súbito, levantam-se, abrem a porta e saem da casa sem se despedirem; e as melhores, que entram em casa, mexem nas gavetas, esvaziam o nosso frigorífico, chamam "mãe" à nossa própria mãe e, mesmo quando lhes dizemos "Sai!" insistem em ficar e ainda têm a lata de dizerem barbaridades do género "É para o teu próprio bem". Eu, sinceramente, ainda estou para perceber porque é que somos tão rudes com estas últimas, porque é que às vezes não lhes ligamos nenhuma e as ignoramos por completo, e mesmo assim, não saem de lá de casa. Torna-se impressionante, pois aconteça o que acontecer, passe o tempo que passar, e mesmo que a casa mude de sítio, mais que uma vez, aumentando a distância, mesmo que as possibilidades e ocasiões sejam de desânimo e nada propícias, essas pessoas continuarão a encher a casa, mesmo sem estarem presentes nela.
Pela minha vida já passaram todos estes tipos de pessoas, só lamento piamente que só ultimamente tenha aprendido a agradecer àquelas que me dizem "Não, eu não saio daqui, isto é para o teu bem".