sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Revoluções


A História, seja deste século ou de outro, é, essencialmente, um relato sumário de batalhas.
Ora temos as estruturas de poder, a complexidão e as marchas gigantescas e os governadores blasfemos, a política, enfim, num estatuto de superioridade incompreensível, as revoluções de regimes onde só sobrevivem os grandes cépticos ou os burocratas disciplinados, ora temos o oposto: os militantes, os presos de guerra, os idealistas, os que passaram a clandestinidade, os ilegais, os lutadores de rua, os protestantes, promotores nas aventuras espirituais e físicas, sociais, económicas, políticas, culturais, os verdadeiros puritanos, profetas das suas próprias causas, condenados a alcançar o sucesso nas manifestações que lideram e pelas quais se sacrificam. Outras vezes, estes mesmos últimos parecem amaldiçoados, encarcerados na cadeira da morte ou da tortura, arrependidos, traídos, desenganados. Ironia das ironias, quando partem assassinados por aquele mesmo sistema que idealizaram e construíram. Um pouco exageradamente trágico, eu sei, mas num tempo em que se matam deuses e se dá o livre arbítrio aos homens, já tudo se pensa e tudo se aceita.
As populações anseiam desesperadamente pelas revoluções, pelas mudanças repentinas, pelos heróis míticos, que outrora nos gratificaram tanto. E quem são eles? Habitualmente, de perfil instável, inimigos dos que ousam opor-se a eles, contestantes permanentes por necessidade individual, pessoas que podem até nem ter o mínimo de senso comum, mas que têm a coragem necessária para serem os pioneiros em tudo aquilo que fazem, e isso basta numa revolução, desde que seja feita com audácia. Então as revoluções triunfam, instauram-se as novas ordens, até que estas se voltam a tornar indesejáveis, e os heróis deixam de o ser, precisamente por não terem capacidade de condução e de manutenção daquilo que era, supostamente, a normalidade. Os heróis deixam de ser precisos e há o retorno dos sábios, dos administradores, dos ministros, dos intelectuais que com as suas qualidades oficiais vêm explicar com os seus discursos de hora o quanto eram indispensáveis. Eis que o tribunal parou a tribuna. Vão falando, falando, sempre com o punhal preparado mas sem nunca o tirarem da bainha. Os justos, que outrora se exaltaram, agora calam-se e fecham-se como as portas que nunca se abrem.
E a nova ordem? O novo regime? E a mudança? Qual mudança? Qual já não se sabe. Morre sempre a que nasce, esquece-se tudo e volta-se a fazer de novo, para ficarem aqueles que se lembram e narrarem os episódios da tal História.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

São Ideias


O amor, e não um amor, faz-se quando há tempo. No intervalo para almoço, na pausa para café, depois da aula de dança, antes de ir dormir. O amor é uma monstruosidade. Livrem-nos do «amo-te»! Cheguem para lá com o «gosto de ti»! Dizemos um «adoro-te» e temos a polícia do amor a cair-nos em cima: mais um desacato e dificilmente nos escapamos da pildra. O amor quer-se guardado no cofre. De costas contra os cantos da sala. Atrás das grades, a ver o sol entrar aos quadradinhos. Como os cães, preso pela trela. Atado num poste com um cadeado.  O amor assalta-nos. Rouba-nos o tempo. O amor custa. Lá se vai uma parte do rendimento para o amor. O amor gasta luz, gasta água, e ainda suja o tapete da entrada. Definitivamente, fora de moda, antiquado.
O amor é para as crianças, gente crescida não usa disso. É-lhes sempre penhorado.
Eu aviso desde logo, não tenho o mínimo jeito para ser a pessoa que conjecturam que eu seja. E a minha noção de previsibilidade está assaz aquém daquilo que sei fazer, não sou de confiança e como tal, aconselho a que não contem comigo. Mal vejo o amor a passar, não sou daquelas que fica a assistir sem correr atrás, como quem vai a uma peça de teatro. Amor está para mim como um estímulo está para uma resposta do sistema nervoso central. Não tenho mínimo talento para telefonemas demorados, muito menos para passeios em jardins de romance.
Podem esquecer a ideia de me pedirem para ser cão que ladra mas não morde. Gastam o vosso tempo e o vosso latim a pedirem para não dizer o que não estava programado. Escusam de implorar para ouvir em silêncio. Vou querer justificações e explicações para tudo, e a minha curiosidade está sempre acima do esperado. Não estou para adiar beijos, alegrias, abafar infelicidades e evocar pretextos. Se querem mesmo que vos poupe ao meu amor, não apareçam nem próximo. A única coisa que têm de conceber é que compreender não está nos meus projectos de compromisso. 

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Uma mulher se despir emocionalmente


Assistir uma mulher desabotoar suas fantasias, suas dores, sua história. É erótico ver uma mulher, que sorri que chora, que vacila, que fica linda sendo sincera, que fica uma delícia sendo divertida, que deixa qualquer um maluco sendo inteligente. Uma mulher que diz o que pensa, o que sente e o que pretende, sem meias verdades, sem esconder seus pequenos defeitos. Aliás, deveríamos nos orgulhar de nossas falhas, é o que nos torna humanas, e não bonecas de porcelana. Arrebatador é assistir ao desnudamento de uma mulher em que sempre se poderá confiar, mesmo que vire ex, mesmo que saiba demais. Não é fácil tirar a roupa e ficar pendurada numa banca de jornal, mas difícil por difícil, também é complicado abrir mão de pudores verbais, expor nossos segredos e insanidades, revelar nosso interior. Mas é com certeza o que devemos continuar fazendo. Despir nossa alma e mostrar para valer quem somos e o que trazemos de belo, de lindo, de maravilhoso por dentro.
Não conheço strip-tease mais sedutor.


Martha Medeiros

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Marilyn


"A wise girl kisses but doesn't love, listens but doesn't believe, and leaves before she is left."  

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Indiferença


Passamos pelas coisas sem as ver,

gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.
Eugénio de Andrade, As Mãos e os Frutos

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Dia dos Namorados


Jantar fora, receber rosas, oferecer uma caixa de bombons ou um peluche em forma de coração que diz um amo-te da forma mais banal possível. Mais um ursinho castanho para pôr junto da almofada. Mais uma mensagem lamechas para o conjunto das recordações amorosas. Mais uma carta em jeito de declaração… digam-me, aqueles que estão realmente devotos em relação a alguém, se isso é realmente relevante num só dia, numas ínfimas horas e nuns sumários minutos? O prazer de namorar aglutinado num só dia do ano com direito a comemoração e a celebração inebriantes é o suficiente? Sabe bem, mas está mais que fora de moda. Sabe bem mas é inerte num só dia.
Dia dos namorados, e deve haver quem o compreenda bem, é o dia de todos os dias. E para quê jantar fora? Porque não cometer loucuras em vez de se ficarem pelas casualidades, formalidades desnecessárias e irremediavelmente corriqueiras? Ponham o carro a trabalhar e vão buscar as vossas amantes a casa com uma boa garrafa de vodka na bagageira, levem-na para o sítio mais abstracto e menos usual, o mais inimaginável daquilo que é real. Embebedem-se, riam-se juntos, conheçam-se ainda mais, nunca tocando naquilo que é profundamente desconhecido. E no dia seguinte, não se lembrem de nada, e acreditem que se vão lembrar para sempre. Façam-no hoje e repitam na semana seguinte. Na outra vai ser ainda melhor. Jantar fora? Pode ser todas as sextas-feiras. Oferecer rosas? Elas murcham. Peluches? Vão ficar com um cheiro a mofo insuportável daqui a uns anos quando já estiverem escondidos pelo sótão, ou até pela cave…
Bons dias dos namorados (e não um único dia por ano) para aqueles que os têm, e para os outros… Um óptimo dia dos solteiros, como costumo dizer!

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Quem se Interessa pela Cultura?


Afinal, quantas pessoas se interessam pela cultura?, se põem o problema da vida?, do homem?, se põem a interrogação sobre o que nos rodeia? É um erro tocante o imaginar-se que as pessoas cultivadas se interessam pela cultura. A cultura não vem nos livros, nem nos cursos, nem nas salas de conferências, espectáculos, exposições com uísque ou a seco. A cultura é um problema que tem que ver com os nossos cromossomas e tem a dimensão secreta, oculta, privada, íntima, de uma vivência sagrada. 

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 3' 

Fears


“Love takes off masks that we fear we cannot live without and know we cannot live within.”

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Autocarros vs. Palácios


Os autocarros parecem autênticos palácios. Palácios da consolação e da lamentação pagã.
Se trocassem por jóias todas as frases queixosas e insolentes que se ouvem mesmo de quem está de fora de um destes transportes modernizados, o país seria certamente um recurso inesgotável de luxo e garanto que a dívida pública seria algo acerca do qual não saberíamos nem o significado.
O que está aqui latente é a capacidade repugnante que o ser humano eleva ao ver-se somente feliz impugnando a tinta permanente nos outros os seus próprios problemas. É verdade meus caros, nós somos felizes a partilhar as nossas histórias, e gostamos que os outros as sintam tal e qual como nós sentimos. Gostamos de infligir a dor, gostamos que percebam que aquilo que sentimos é sempre pior, sempre mais forte, sempre mais doloroso, e sempre mais preocupante. Gostamos de ser mais, no bom e no mau. Para isso, vamos à prateleira buscar a receita: um misto de expressividade e dramatização, tudo muito bem batido, umas pitadas de sal na língua e uma dedada de pimenta, mais gritaria q.b. e voilá! Eis o sucesso para um autêntico espectáculo em praça pública, aconselho vivamente a quem queira dar nas vistas, garanto que dá um resultado absolutamente genial.
Depois dos autocarros, penso que o próximo passo sejam os centros comerciais. Qualquer espaço serve para uma dose familiar de contratempo.
Anyway, vou começar a andar muito mais vezes a pé...

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

A libertação da literatura


Não conheço nenhum outro processo de libertação tão eficiente como a arte. Mais esmiuçadamente, a literatura.
Para aqueles que apreciam a arte das letras e que nelas encontram a guarita de mais um dia de fadiga, não há nada mais tonificante do que uma boa frase, um bom texto, nem que seja uma boa anedota. Para os mais astutos, nada melhor que uma boa reflexão, nada mais revigorante que umas boas páginas de um livro, uns bons parágrafos e umas estilizações ágeis.
Não conheço, sem sombra para dúvidas, nenhuma outra maneira de libertar e refrescar a mente como esta.
A palavra “liberdade” implanta-se muito bem na literatura. Aliás, a literatura é liberdade, e a literatura evoca o chamamento da liberdade naqueles que a prezam. Ler é aspirar liberdade. Mas ler é, também, por conseguinte, adiar o que nos pertence: os constrangimentos, as frustrações, as preocupações, os desprezos, as angústias. Porque para sermos livres temos de nos desapegar daquilo que se apegava ao nosso ser, e quando lemos estamos a fazê-lo: estamos a ler os males de outros e a descolarmos os nossos, seja por horas ou por meros minutos. Isto quer ainda dizer que todos esses nossos males, ou são fruto da nossa leitura, ou são o desencadear da mesma. Ou são a explosão do que lemos, ou a construção aos poucos e poucos de novas realidades.
O escritor, porém, permanece o idílico homem livre. O homem livre que escreve, abstraindo-se do papel que coloca diante dele. Ou é, de facto, assim tão livre, ou então deseja sê-lo vivamente. Tão livre e tão ideal, ou tão sedento por não o ser. Tão perfeito aos olhos dos leitores, ou tão necessitado quanto estes últimos. Quer escreva um romance, quer aposte num drama, quer descreva um assassino em série ou uma criança inocente que perde os pais num acidente horrendo, o escritor é tão pouco livre nas palavras porque tem só aí de fazer uma pesada escolha. O escritor é tão pouco e tão nada que precisa de escrever para ver os fantasmas desabotoarem-lhe a camisa e deixarem-no respirar. O escritor é tão recluso da sua própria mente como a sociedade se vê reclusa da mente de outrem. E ainda assim, ambos anseiam ser livres, e a ilusão de que o são majestaticamente alimenta todo um processo de libertação inconsciente que nos mata, cega, engole, e deleita: a literatura.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Elogio ao amor


“Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo.
O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.
Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em “diálogo”. O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam “praticamente” apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do “tá bem, tudo bem”, tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?
O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso “dá lá um jeitinho sentimental”. Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar.
O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A “vidinha” é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende.
O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha – é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.”

Miguel Esteves Cardoso in Expresso

Ps: Este vale mesmo a pena ser lido até ao fim.