sábado, 19 de junho de 2010

Em homenagem

Digo desde já que para mim, o Memorial ficou órfão. A partir de um homem que era ateu e comunista, até um escritor que talvez não o fosse tanto como afirmava, mas que primava no seu carácter visionário e vanguardista. Não digo foi, porque ainda o é, vai sempre ser, como tal: é sem dúvida um dos melhores, senão o melhor, autor português, que ousou carregar às costas a língua portuguesa até lugares que seriam provavelmente inimagináveis. Começando na coragem e irreverência, terminando na criatividade e mentalidade, acho que a melhor homenagem que se pode fazer a alguém assim é continuar a citar os seus quadros de letras.
"Não digamos, Amanhã farei, porque o mais certo é estarmos cansados amanhã, digamos antes, Depois de amanhã, sempre teremos um dia de intervalo para mudar de opinião e projecto, porém ainda mais prudente seria dizer, um dia deciderei quando será o dia de dizer depois de amanhã, e talvez um dia preciso, se a morte definidora vier antes desobrigar-me do compromisso, que essa, sim, é a pior coisa do mundo, o compromisso, liberdade que a nós próprios negámos..." 
 José Saramago

Ambíguos

Eu acordo e observo-te nessa tua delineação megera de fases, nessa reflexão intrometida de um corpo que não se mede por palmos. A tua respiração, que me mata ao de leve. O som dos lençóis a enxugarem a tua pele e o piar dos pássaros lá fora, que fazem com que o nosso quarto se esvazie do silêncio.
Levanto os olhos sobre a secretária e busco aquilo que não tenho. Tu ainda dormes e o dia ainda é juvenil, a minha aura ainda não despertou e apenas a minha capacidade tumultuosa e despercebida de interpretação e análise está de vigília. O pôr os pés no chão frio arrepia-me a espinha e cada passo é como um desvio para o sítio que não conhecemos. O morticínio incessante que arrastas na tua boca é o que me enlouquece, a tua própria quietação é que me leva a um estado de dura necessidade desnecessária de ti. Os tapetes deslizam sob mim e o chão vai quase como que se abrindo pelo buraco do nada. Nas gavetas, as minhas memórias literárias, que já nem reconheço. São de alguém diferente, que se dissipou com a brisa do contra-relógio. São somente os restos dos eus perdidos nas meras cartas sem assunto, representações iluminadas de uma realidade que, como o todo que é mutável, deixou de o ser. Tu também o és, como minha metade incompleta que desenhas no estrado do quarto. Cada um guarda em si uma multiplicidade inequívoca de personalidades rasgadas, erodidas pelo tempo e pela distância que se percorre, pela cultura em que se insere e que protagoniza, pelas pessoas que partilha, pelas tarefas que conclui. 
Estou em pedaços e tu salvas-me. Eu caio e ofereces a mão. Simplificas, eu complico. Multiplicas, eu divido. Eu sonho, tu realizas. Eu discurso, enquanto tu ouves. Cantas, eu componho. Desenhas, eu escrevo. Eu sou duas, juntos somos quatro e o nosso choque é desmedido. Fazes parte, eu sou parte. Somos dois e somos milhares. Somos aquilo que não sabemos e vamos acabar precisamente onde não queremos.
Agora desperta, as estrelas chamam.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Tupac

I believe that everything you do bad comes back to you. So everything that I do that's bad, I'm going to suffer for it. But in my heart, I believe what I'm doing... is right. So I feel like I 'm going to heaven. I think heaven is just when you sleep, you sleep with a good conscience, you don't have nightmares. Hell is when you sleep, the last thing you see is all the f*cked up things you did in your life and you just see it over and over again, cause you don't burn. If that's the case, it's hell on earth cause bullets burn.
Tupac Shakur

domingo, 13 de junho de 2010

Caminhos

Caminhos. Caminhos que cada um toma no percurso letal da morte. Tudo o que nasce, morre, logo, a vida é consequentemente a morte implícita do próprio ser. Alguém dizia um dia que todas as acções são feitas com um fim à vista, com uma miragem final que justifica todos os meios usados. Analisando assim, a vida não passa de um meio, que começa no nascimento e tem meta na morte, que corta todos os males e todos os pecados cruzados e trilhados. Não explica mas finaliza, e é, portanto, uma justificação inata.
O percurso trilhado, esse sim é decisivo na morte tomada, na hora, no local e no acto de chegada do nosso novo ponto de partida. O implacável ser que concretizamos deve ser o único capaz de deliberar acertadamente acerca do caminho a escolher. Quer se escolha o caminho de pedras, o caminho de areia, o caminho marítimo, o caminho do alcatrão, quer se estagne num qualquer cimento sem saber o próximo trecho, quer se monte tenda numa encruzilhada mortífera. Daí nunca se poder julgar sobre o caminho que cada um escolhe, pois, claramente, cada um saberá julgar o seu próprio caminho. Cada um será dono e senhor dos seus passos, sabendo sentar-se na tribuna a olhar a sua própria dor e renúncia. Uma coisa será sem dúvida tu achares que estás no caminho certo, outra coisa é estancares no teu caminho a mirar as passadas de outrem, achando que esse tal está errado, pois o teu caminho é o único com saída.
Mas os caminhos são diferentes, não fossem assim existir duas ruas que terminam no mesmo ponto. A coragem, essa sim destina os passos errados que são percutidos. É preciso essa bravura de alma para impregnar o corpo nas derrotas, nos desânimos, nas decepções, nas angústias que se passam a transportar enquanto se prossegue a caminhada. As alegrias vêm no bolso, pequenas e desatinadas, apenas para arrastarem o ânimo que vem de reboque, enquanto que as misérias e as dores são levadas nas costas, doloridas e concentradas, especiosas ferramentas que anunciam a estrada subsequente.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Somos todos diferentes

Que somos todos diferentes, é um axioma da nossa naturalidade. Só nos parecemos de longe, na proporção, portanto, em que não somos nós. A vida é, por isso, para os indefinidos; só podem conviver os que que nunca se definem, e são, um e outro, ninguéns.
Cada um de nós é dois, e quando duas pessoas se encontram, se aproximam, se ligam, é raro que as quatro possam estar de acordo. O homem que sonha em cada homem que age, se tantas vezes se malquista com o homem que age, como não se malquistará com o homem que age e o homem que sonha no Outro?
Somos forças porque somos vidas. Cada um de nós tende para si próprio com escala pelos outros. Se temos por nós mesmos o respeito de nos acharmos interessantes (...) Toda a aproximação é um conflito. O outro é sempre o obstáculo para quem procura. Só quem não procura é feliz; porque só quem não busca, encontra, visto que quem não procura já tem, e já ter, seja o que for, é ser feliz, como não pensar é a parte melhor de ser rico.
Olho para ti, dentro de mim, noiva suposta, e já nos desavimos antes de existires. O meu hábito de sonhar claro dá-me uma noção justa da realidade. Quem sonha de mais precisa de dar realidade ao sonho. Quem dá realidade ao sonho tem que dar ao sonho o equilíbrio da realidade. Quem dá ao sonho o equilíbrio da realidade, sofre da realidade de sonhar tanto como da realidade da vida e do irreal do sonho como do sentir a vida irreal.
Estou-te esperando, em devaneio, no nosso quarto com duas portas, e sonho-te vindo e no meu sonho entras até mim pela porta da direita; se, quando entras, entras pela porta da esquerda, há já uma diferença entre ti e o meu sonho. Toda a tragédia humana está neste pequeno exemplo de como aqueles com quem pensamos nunca são aqueles em quem pensamos.
Fernando Pessoa

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Generalizar

Estou cansada de histórias de amor, de amar, de gostar, de uma maneira esteriotipada que todos pensam estar correcta. Pura e simplesmente por acharem que aquela é a maneira mais certa de gostar. Mas gostar não tem sequer uma gota de pensar. Gostar não tem nexo, não tem lógica, sentido. Não se gosta uma vez por semana, nem até às onze da noite, não se gosta no campo ou na cidade. Gosta-se, unicamente, sem lugares, sem horas, sem dias, sem compromissos marcados. Gostar é apenas uma submissão do inconsciente a um misto de sentimentos atrelados que não se explicam nem se fazem explicar.
Argumentos e justificações são irremediavelmente dispensáveis neste assunto. Só tentamos arranjá-los precisamente por odiarmos francamente a ideia de não termos controlo sobre aquilo que sentimos. Tudo aquilo que não podemos adiar ou segurar na palma das mãos é negado e arrebatado, na esperança de conseguir mudar os factos que são, por si só, imutáveis.
O amor pode ser mesmo assim. Diferente de todos, irreverente, sendo cada caso cada vez mais original que o seu anterior. Mas o sentimento em si, só cada um sabe o quanto ele se aproxima ou não de uma verdade individual, que não deve ser generalizada, como se de uma premissa universal se tratasse. Essa verdade, tão puritana e tão débil, não se copia, não se divide, ninguém a leva e ninguém a traz. Cada um tem de a descobrir, de lhe tirar o lençol do medo de cima, sozinho.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Momentos

Duas pessoas

Duas pessoas vão ser sempre, seja por que meio for, duas pessoas. E jamais nos passaria pela cabeça, estarmos no centro de uma relação, e, ousarmos pensar desta maneira. “Duas pessoas são um casal, um par, ponto final, parágrafo.” Mas infelizmente existem sempre pequenas anotações que, apesar de evitarmos confrontá-las, terminam impossíveis de serem tocadas. Duas pessoas são sempre duas individuais pessoas, sejam elas quais forem ou tenham elas ou não decidido passar o resto da vida juntas. Até podem decidir, e daí? É por isso que vamos saber de tudo acerca um do outro? Não… não é nem vai ser, por muito que desejássemos que assim fosse.
Tudo tem sempre uma gruta, uma fenda, um buraco de uma fechadura onde já nenhuma chave encaixa. As pessoas são assim. Cada indivíduo remete para si pequenos e grandes segredos que não vai partilhar nunca com ninguém, aconteça o que acontecer. E para além de ser impróprio e inadequado, também nunca ninguém tem a coragem para tentar delinear esses segredos, para limar a aresta da chave que completa esse vazio. Porque na verdade é somente isso que permanece: um vazio. Um vazio incompreendido e impenetrável, um aglomerado de consequências, de características que são inexequíveis.
Uma delas será, sem hesitação, o receio que tenho em relação a ti, que eu sei perfeitamente que não compreendes e que nunca vais compreender, que talvez nem tenhas noção do quão grande é, que eu própria não sei ditar e que me faz colocar o pé atrás sempre que algo desata entre nós. O mais absurdo de toda esta história é que continua a ter a sua derradeira dose de pontos altos, continua a acarretar cada vez mais sentimentos, sem se preocupar minimamente com o ridículo da nossa falta de confiança e de cumplicidade. Falta-nos ser aquilo que não somos e quebrar todos os mitos juntos. Falta-nos sair da rotina abruptamente e desfalecer as memórias para corromper nas vivências futuras. Falta-nos ir até à praia correr na areia e falta-nos molhar os sapatos nas poças da chuva, carecem todas essas necessidades e todas essas lamechices próprias da época.
Sou uma extrema egoísta, eu sei, porque estou a pensar somente em mim, naquilo que ouço, que recordo, e às vezes, muito frequentemente, até esqueço que possivelmente também tu tenhas as tuas dúvidas, mais ou menos sérias, que não deixam de ser razoáveis, relevantes e decisivas. Mas é impraticável tirar da cabeça essa indecisão, e infelizmente, é facto certo que não vou esquecer aquilo que sei tão facilmente, e quando algo acontecer, vai estar sempre na minha mente, por mais que tente bani-lo. Quando isso suceder, vou atirar-te tudo à cara, vou mostrar-me descontente, vou mover mundos e fundos, vou, provavelmente, dizer que te amo às vezes para esconder o facto de te amar sempre.
Vou pedir para sermos um casal, mas ambos sabemos que nunca vamos passar de duas meras e singelas pessoas. Tão simples quanto isso.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Volta

E você me olha com essa carinha banal de "me espera só mais um pouquinho". Querendo me congelar enquanto você confere pela centésima vez se não tem mesmo nenhuma mulher melhor do que eu. E sempre volta.

Tati Bernardi