terça-feira, 19 de julho de 2011

Trabalho


Trabalhos. Trabalhos simples, trabalhos árduos, trabalhos aborrecidos, trabalhos fascinantes ou ridículos, trabalhos que cansam e trabalhos que deixam a desejar, ou que são desejados. Trabalhos.
Sejam eles quais forem, não são mais trabalhos que singelas preparações, pois a mais complexa e exacerbada tarefa talvez seja a de amar a outro o quanto nos amamos a nós. É necessária não só dedicação como também ambição e prazer no trabalho que se impõe, coragem, na sua forma mais ampla e mais sintética, para uma actividade que pode ser tão estranha e tão inexplicável que possivelmente podemos até nem chegar a encontrar.
Deixar-se amar também não é linear ou puritano. Deixar-se amar é deixar-se consumir numa chama infinita; amar é fazer-se incendiar a si próprio numa luz perene. Um é completar o outro, é fazer ver duas solidões juntas para que deixem de o ser.

Tenho mais almas que uma

Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo.

Ricardo Reis, in "Odes"



segunda-feira, 9 de maio de 2011

Que nada nos limite, que nada nos defina


Que nada nos limite, que nada nos defina 
que nada nos sujeite. Que a liberdade seja 
nossa própria substância, já que viver é ser 
livre. Porque alguém disse e eu concordo, que 
o tempo cura, que a mágoa passa, que decepção 
...não mata, e que a vida sempre, sempre continua.

Simone de Beauvoir

terça-feira, 29 de março de 2011

Rir


A nossa situação já nem sequer dá azo a muitas críticas ou dissertações. O assunto não está encerrado mas está, com certeza, mais do que enterrado. E porventura, bem lá no fundo, perto do sufoco.
Na minha opinião, chegamos ao patamar em que a melhor crítica e a mais poderosa é sem dúvida a gargalhada. O governo cai? Rir. O IVA sobe? Rir. Corrupção? Rir. Opressão? Rir. O riso não é um sentimento, não é uma palavra, não é tão pouco um pensamento, não cria nada, mas destrói. A política pode tomar o rumo que tomar, a atitude que quiser e bem lhe apetecer, que o mais correcto nesta altura é dar uma gargalhada bem alto. Pode ser que um dia destes o parlamento reúna todas as gargalhadas e se ria com o resto do povo. 

Prémios



Gostava de perceber porque é que as pessoas tanto sentem a necessidade de verbalizar tudo e mais alguma coisa. Gostam de pensar nos porquês, e nos mas, e nos ses, e nas razões e nos motivos, e nas justificações, e acabam por não perceber minimamente aquilo que tentam decifrar mas continuam desenfreadamente atrás de uma explicação que na maior parte das vezes não existe.
Nesse aspecto, tudo aquilo que adquirimos na vida acabam por ser simples prémios que não têm qualquer mérito. Por exemplo, quando um homem diz a uma mulher que a ama, e que a ama porque ela sabe cozinhar o prato favorito dele, porque ela não olha para outros homens e é decente, porque é inteligente, porque é sensível e porque espera por ele todos os dias. Alguém se sente realizado com isso? Optava mil vezes por alguém que me dissesse que é louco por mim apesar de eu ser fria, calculista e manipuladora, sem saber porquê.

domingo, 27 de março de 2011

Respiro o teu corpo


Respiro o teu corpo:

sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.

Eugénio de Andrade

quarta-feira, 23 de março de 2011

Portugalite


Entre as afecções de boca dos portugueses que nem a pasta medicinal Couto pode curar, nenhuma há tão generalizada e galopante como a Portugalite. A Portugalite é uma inflamação nervosa que consiste em estar sempre a dizer mal de Portugal. É altamente contagiosa (transmite-se pela saliva) e até hoje não se descobriu cura.
A Portugalite é contraída por cada português logo que entra em contacto com Portugal. É uma doença não tanto venérea como venal. Para compreendê-la é necessário estudar a relação de cada português com Portugal. Esta relação é semelhante a uma outra que já é clássica na literatura. Suponhamos então que Portugal é fundamentalmente uma meretriz, mas que cada português está apaixonado por ela. Está sempre a dizer mal dela, o que é compreensível porque ela trata-o extremamente mal. Chega até a julgar que a odeia, porque não acha uma única razão para amá-la. Contudo, existem cinco sinais — típicos de qualquer grande e arrastada paixão — que demonstram que os portugueses, contra a vontade e contra a lógica, continuam apaixonados por ela, por muito afectadas que sejam as «bocas» que mandam.
Em primeiro lugar, estão sempre a falar dela. Como cada português é um amante atraiçoado e desgraçado pela mesma mulher, é natural que se junte aos demais para chorar a sua sorte e vilipendiar a causa comum de todos os seus males. Assim sempre se vão consolando uns aos outros. Bebem uns copos, chamam-lhes uns nomes, e confortam-se todos com o facto de não sofrerem sozinhos. Às vezes, para acentuar a tristeza, recordam-se dos bons velhos tempos em que Portugal, hoje megera ingrata que se vende na via (e na vida) pública, era uma namorada graciosa e senhora respeitada em todos os continentes. E, quando dez milhões de lágrimas caem para dentro do vinho tinto que seguram nas mãos, todos abanam as cabeças, dizendo em uníssono «e hoje é o que se sabe...».
Não é só o facto de não saberem nem poderem falar noutra coisa que prova a existência duma paixão. Como qualquer apaixonado arrependido, o português acha Portugal má como as cobras, mas... lindíssima. O facto de ser tão bonita de cara (as paisagens, as aldeias, a claridade, o clima) só torna a paixão mais trágica. O contraste entre a beleza à superfície e a vileza subterrânea dá maior acidez às lágrimas. É por isso que só há um tabu naquilo que se pode dizer de Portugal. Pode dizer-se que é bárbara e miserável, traiçoeira e ingrata, e tudo o mais que há de aviltante que se queira. O que não se pode dizer é «Portugal é um país feio». Nunca. Também neste aspecto se comprova a paixão.
Em terceiro lugar, os portugueses só deixam que outros portugueses digam mal de Portugal. Só quem sofreu nos braços dela (e que ela vai tratando ignobilmente a seu bel-prazer, por saber que nunca lhe hão-de fugir), se pode legitimamente queixar. Isto porque Portugal, sendo uma lindíssima meretriz, engata os estrangeiros descaradamente, desfazendo-se em encantos e seduções para com eles. Esta ideia exprime-se no dogma nacional que reza «Isto é bom é para os turistas», como quem diz «A viciosa da minha mulher a mim não me dá nada, mas atira-se a qualquer estranho que lhe apareça à frente». Qualquer estrangeiro que tenha a ousadia e o mau gosto de se fazer esquisito frente aos avanços despudorados de Portugal está condenado ao maior desagrado de todos.
Esta atitude é lógica, porque só há uma coisa pior do que se ser atraiçoado por quem se ama — é não se ser atraiçoado só porque o outro a acha feia e não a quer. À traição da mulher junta-se o insulto do outro, ao não achá-la sequer digna de um pequenino adultério. É como dizer-nos: «Não só estás apaixonado por uma pega, como ela é feia como breu.».
Os estrangeiros que nos visitam nunca compreendem isto. Lêem e ouvem dizer por todo o lado as maiores infâmias acerca de Portugal e não percebem porque é que todos lhe caem em cima no momento em que ele se atreve a dizer que um pastel de nata não está fresco, ou que tem a impressão de ter sido enganado no troco por um motorista de táxi.
Em quarto lugar, apesar do português passar o tempo a resmungar e a queixar-se quando está perto de Portugal, sabe-se o que lhe acontece quando está há muito tempo longe dela. Os grunhidos transformam-se em gemidos e as piscadelas de olho já não vencem senão lágrimas. E pensa invariavelmente: «Portugal é uma bruxa, mas antes mal tratada por ela do que bem por outra donzela...».
Em quinto e último lugar (e o «Quinto» não é fortuito), temos a derradeira prova da paixão do português por Portugal. Tem a ver com a ideia que ele tem do que Portugal podia ser. Para cada português, «isto podia ser o melhor país do mundo se...» (Segue-se uma condição invariavelmente impossível de se cumprir). A miragem deste país potencial é um paraíso que agrava substancialmente o inferno que os portugueses já supõem aturar. Isto porque os portugueses graças a Deus, têm expectativas elevadíssimas. Nada abaixo do Quinto-Império pode garantir satisfazê-los. Nenhum português se contenta, por exemplo, só com pertencer à Europa. Aliás, só começaria a contentar-se caso fosse a Europa toda a pertencer a Portugal. (E mesmo assim, qual não seria o português, com um cepticismo que provém de um longo e civilizadíssimo cansaço cultural, que não desconfiasse logo que «isto agora da Europa pertencer a Portugal traz água no bico, com certeza...?»).
Estas expectativas insaciáveis revelam-se na saudável mania que têm os portugueses de comparar Portugal só com a pequena minoria de países que se encontram em muito melhor situação. Para um português, Portugal é o país mais pobre do mundo. Isto é, do mundo «que interessa». Se lhe falarmos nos demais 75% que estão piores que nós, diz logo: «Está bem, mas isso nem se fala...» Nem é preciso ser a Nicarágua ou o Bangladesh — basta mencionar a Grécia ou a Turquia para ele se virar para nós com ar despeitoso e incrédulo e dizer: «Ó filho, está bem, mas isso...».
É curioso notar que a Espanha goza de um estatuto especial nestas comparações. Nem conta como «melhor» nem «pior». A Espanha é sempre até, e a frase «Até na Espanha...» tem o significado precioso de chamar a atenção para um país reconhecidamente rasca onde, neste ou naquele aspecto, já estão escandalosamente melhores do que em Portugal. De qualquer modo, os espanhóis não são como nós. Acham, por exemplo, que é motivo de orgulho ser-se espanhol. Nisso pelo menos, estão muito piores que nós. Entretanto, compreende-se que o difícil não é amar Portugal — o difícil é deixar de amá-lo, também porque é sempre difícil nós sermos felizes.

Miguel Esteves Cardoso, in "A Causa das Coisas"

terça-feira, 22 de março de 2011

Sons




A apreciação musical é mais introspectiva se comparada com a de pintura ou de literatura.
A apreciação musical apela a um tempo de duração indizível que não pode ser aprisionado no discurso. É pela superfície que reagimos às múltiplas emoções e impressões vividas que acompanham uma obra musical e cujos sons-em-contexto escapam ao controle da consciência.
Na pintura e na literatura há tempo para elaborar discursos conscientes. Na música, há mais silêncio; sonho solitário.
A apreciação da música é uma experiência mais solitária e privada do que a apreciação da pintura ou da literatura. Ouvir música é mais como sonhar; a nossa actividade imaginativa é largamente solitária. Tu e eu ficcionalmente.

Walton

segunda-feira, 21 de março de 2011

Quem não Dava a Vida por um Amor?


O essencial é amar os outros. Pelo amor a uma só pessoa pode amar-se toda a humanidade. Vive-se bem sem trabalhar, sem dormir, sem comer. Passa-se bem sem amigos, sem transportes, sem cafés. É horrível, mas uma pessoa vai andando. Apresentam-se e arranjam-se sempre alternativas. É fácil. Mas sem amor e sem amar, o homem deixa-se desproteger e a vida acaba por matar.
Philip Larkin era um poeta pessimista. Disse que a única coisa que ia sobreviver a nós era o amor. O amor. Vive-se sem paixão, sem correspondência, sem resposta. Passa-se sem uma amante, sem uma casa, sem uma cama. É verdade, sim senhores.
Sem um amor não vive ninguém. Pode ser um amor sem razão, sem morada, sem nome sequer. Mas tem de ser um amor. Não tem de ser lindo, impossível, inaugural. Apenas tem de ser verdadeiro.
O amor é um abandono porque abdicamos, de quem vamos atrás. Saímos com ele. Atiramo-nos. Retraímo-nos. Mas não há nada a fazer: deixamo-lo ir. Mais tarde ou mais cedo, passamos para lá do dia a dia, para longe de onde estávamos. Para consolar, mandar vir, tentar perceber, voltar atrás. O amor é que fica quando o coração está cansado. Quando o pensamento está exausto e os sentidos se deixam adormecer, o amor acorda para se apanhar. O amor é uma coisa que vai contra nós. É uma armadilha. No meio do sono, acorda. No meio do trabalho, lembra-se de se espreguiçar. O amor é uma das nossas almas. É a nossa ligação aos outros. Não se pode exterminar. Quem não dava a vida por um amor? Quem não tem um amor inseguro e incerto, lindo de morrer: de quem queira, até ao fim da vida, cuidar e fugir, fugir e cuidar?

Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume'

domingo, 13 de março de 2011

Banalizações


Deixamos de estar num estado de manutenção e de prevenção, para sermos automaticamente recambiados para um estado de alerta, onde o ínfimo movimento transtorna uma maioria. Todavia, mais do que nunca, vive-se das minorias, e do medo que elas trazem aos grandes grupos. Seja o que for que lhe chamem, tudo se baseia nas raízes íngremes, intrínsecas do medo. As minorias populacionais fazem a sociedade, os preconceitos, os estereótipos, as agressões, as leis, os aumentos de impostos, os cortes nas pensões e, até, as medidas de austeridade. Mas são igualmente as minorias a irem para a rua, e o medo que se tem delas é fácil de entender: é o medo de deixarem de o ser. Clara e subitamente uma minoria passa ao seu oposto. A receita subsiste numas pitadas de coragem, alguma sorte com a divulgação, três colheres de motivação e quatro de união. Tudo bem agitado e colocado numa boa panela, a refeição ideal para aqueles que vêem as suas perspectivas de vida cada vez mais estreitadas por normas que não tiveram culpa de serem tomadas.
Mas este estado de alerta é tão fatal como impensável. Era-nos imprescindível continuar a viver naquele nosso ordinário estado de prevenção. Era preciso não ir na enxurrada do colectivismo para não morrer afogado nas ideologias que nos foram ministradas involuntariamente. Resistir às estrondosas e ridiculamente ridículas pressões políticas, efectuar a distinção magnífica entre o homem artista e o homem das massas, que perde as suas metas por se afundar demasiado noutras que não as suas. Tornou-se fatal o caminho penoso para a qualidade de vida das classes baixas, embora seja humanista aquele que o tomem, porém, é analogamente humano, mais, possivelmente, que se combata para que a condição mais sagrada do homem dê passos gigantescos na sua vanguarda, libertando-se das massas satisfeitas com a assistência médica e cobertura da imprensa. Em pouco tempo vamos poder observar essas massas felizes com as coisas triviais, completamente aliviadas do sentido de expressão pelo qual seriam inicialmente dominadas: essas populações em modo standard que perdem o sentir e que passam a ser unicamente tactuais naquilo que fazem, sem quaisquer momentos de sublimação, intimidade, ou consumação das suas aspirações, sem que as palavras sejam articuladas e os gestos passem a ser condições suficientes. Querem que voltemos ao plano dos símios, dos primatas, desde que não evoluamos. No fim de contas, nós não somos bonecos, nem marionetas que balançam ao som e ao ritmo dos governadores. A tragédia é a banalização. A tragédia é uma democracia de poder mais parlamentar do que populacional.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Revoluções


A História, seja deste século ou de outro, é, essencialmente, um relato sumário de batalhas.
Ora temos as estruturas de poder, a complexidão e as marchas gigantescas e os governadores blasfemos, a política, enfim, num estatuto de superioridade incompreensível, as revoluções de regimes onde só sobrevivem os grandes cépticos ou os burocratas disciplinados, ora temos o oposto: os militantes, os presos de guerra, os idealistas, os que passaram a clandestinidade, os ilegais, os lutadores de rua, os protestantes, promotores nas aventuras espirituais e físicas, sociais, económicas, políticas, culturais, os verdadeiros puritanos, profetas das suas próprias causas, condenados a alcançar o sucesso nas manifestações que lideram e pelas quais se sacrificam. Outras vezes, estes mesmos últimos parecem amaldiçoados, encarcerados na cadeira da morte ou da tortura, arrependidos, traídos, desenganados. Ironia das ironias, quando partem assassinados por aquele mesmo sistema que idealizaram e construíram. Um pouco exageradamente trágico, eu sei, mas num tempo em que se matam deuses e se dá o livre arbítrio aos homens, já tudo se pensa e tudo se aceita.
As populações anseiam desesperadamente pelas revoluções, pelas mudanças repentinas, pelos heróis míticos, que outrora nos gratificaram tanto. E quem são eles? Habitualmente, de perfil instável, inimigos dos que ousam opor-se a eles, contestantes permanentes por necessidade individual, pessoas que podem até nem ter o mínimo de senso comum, mas que têm a coragem necessária para serem os pioneiros em tudo aquilo que fazem, e isso basta numa revolução, desde que seja feita com audácia. Então as revoluções triunfam, instauram-se as novas ordens, até que estas se voltam a tornar indesejáveis, e os heróis deixam de o ser, precisamente por não terem capacidade de condução e de manutenção daquilo que era, supostamente, a normalidade. Os heróis deixam de ser precisos e há o retorno dos sábios, dos administradores, dos ministros, dos intelectuais que com as suas qualidades oficiais vêm explicar com os seus discursos de hora o quanto eram indispensáveis. Eis que o tribunal parou a tribuna. Vão falando, falando, sempre com o punhal preparado mas sem nunca o tirarem da bainha. Os justos, que outrora se exaltaram, agora calam-se e fecham-se como as portas que nunca se abrem.
E a nova ordem? O novo regime? E a mudança? Qual mudança? Qual já não se sabe. Morre sempre a que nasce, esquece-se tudo e volta-se a fazer de novo, para ficarem aqueles que se lembram e narrarem os episódios da tal História.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

São Ideias


O amor, e não um amor, faz-se quando há tempo. No intervalo para almoço, na pausa para café, depois da aula de dança, antes de ir dormir. O amor é uma monstruosidade. Livrem-nos do «amo-te»! Cheguem para lá com o «gosto de ti»! Dizemos um «adoro-te» e temos a polícia do amor a cair-nos em cima: mais um desacato e dificilmente nos escapamos da pildra. O amor quer-se guardado no cofre. De costas contra os cantos da sala. Atrás das grades, a ver o sol entrar aos quadradinhos. Como os cães, preso pela trela. Atado num poste com um cadeado.  O amor assalta-nos. Rouba-nos o tempo. O amor custa. Lá se vai uma parte do rendimento para o amor. O amor gasta luz, gasta água, e ainda suja o tapete da entrada. Definitivamente, fora de moda, antiquado.
O amor é para as crianças, gente crescida não usa disso. É-lhes sempre penhorado.
Eu aviso desde logo, não tenho o mínimo jeito para ser a pessoa que conjecturam que eu seja. E a minha noção de previsibilidade está assaz aquém daquilo que sei fazer, não sou de confiança e como tal, aconselho a que não contem comigo. Mal vejo o amor a passar, não sou daquelas que fica a assistir sem correr atrás, como quem vai a uma peça de teatro. Amor está para mim como um estímulo está para uma resposta do sistema nervoso central. Não tenho mínimo talento para telefonemas demorados, muito menos para passeios em jardins de romance.
Podem esquecer a ideia de me pedirem para ser cão que ladra mas não morde. Gastam o vosso tempo e o vosso latim a pedirem para não dizer o que não estava programado. Escusam de implorar para ouvir em silêncio. Vou querer justificações e explicações para tudo, e a minha curiosidade está sempre acima do esperado. Não estou para adiar beijos, alegrias, abafar infelicidades e evocar pretextos. Se querem mesmo que vos poupe ao meu amor, não apareçam nem próximo. A única coisa que têm de conceber é que compreender não está nos meus projectos de compromisso. 

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Uma mulher se despir emocionalmente


Assistir uma mulher desabotoar suas fantasias, suas dores, sua história. É erótico ver uma mulher, que sorri que chora, que vacila, que fica linda sendo sincera, que fica uma delícia sendo divertida, que deixa qualquer um maluco sendo inteligente. Uma mulher que diz o que pensa, o que sente e o que pretende, sem meias verdades, sem esconder seus pequenos defeitos. Aliás, deveríamos nos orgulhar de nossas falhas, é o que nos torna humanas, e não bonecas de porcelana. Arrebatador é assistir ao desnudamento de uma mulher em que sempre se poderá confiar, mesmo que vire ex, mesmo que saiba demais. Não é fácil tirar a roupa e ficar pendurada numa banca de jornal, mas difícil por difícil, também é complicado abrir mão de pudores verbais, expor nossos segredos e insanidades, revelar nosso interior. Mas é com certeza o que devemos continuar fazendo. Despir nossa alma e mostrar para valer quem somos e o que trazemos de belo, de lindo, de maravilhoso por dentro.
Não conheço strip-tease mais sedutor.


Martha Medeiros

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Marilyn


"A wise girl kisses but doesn't love, listens but doesn't believe, and leaves before she is left."  

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Indiferença


Passamos pelas coisas sem as ver,

gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.
Eugénio de Andrade, As Mãos e os Frutos

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Dia dos Namorados


Jantar fora, receber rosas, oferecer uma caixa de bombons ou um peluche em forma de coração que diz um amo-te da forma mais banal possível. Mais um ursinho castanho para pôr junto da almofada. Mais uma mensagem lamechas para o conjunto das recordações amorosas. Mais uma carta em jeito de declaração… digam-me, aqueles que estão realmente devotos em relação a alguém, se isso é realmente relevante num só dia, numas ínfimas horas e nuns sumários minutos? O prazer de namorar aglutinado num só dia do ano com direito a comemoração e a celebração inebriantes é o suficiente? Sabe bem, mas está mais que fora de moda. Sabe bem mas é inerte num só dia.
Dia dos namorados, e deve haver quem o compreenda bem, é o dia de todos os dias. E para quê jantar fora? Porque não cometer loucuras em vez de se ficarem pelas casualidades, formalidades desnecessárias e irremediavelmente corriqueiras? Ponham o carro a trabalhar e vão buscar as vossas amantes a casa com uma boa garrafa de vodka na bagageira, levem-na para o sítio mais abstracto e menos usual, o mais inimaginável daquilo que é real. Embebedem-se, riam-se juntos, conheçam-se ainda mais, nunca tocando naquilo que é profundamente desconhecido. E no dia seguinte, não se lembrem de nada, e acreditem que se vão lembrar para sempre. Façam-no hoje e repitam na semana seguinte. Na outra vai ser ainda melhor. Jantar fora? Pode ser todas as sextas-feiras. Oferecer rosas? Elas murcham. Peluches? Vão ficar com um cheiro a mofo insuportável daqui a uns anos quando já estiverem escondidos pelo sótão, ou até pela cave…
Bons dias dos namorados (e não um único dia por ano) para aqueles que os têm, e para os outros… Um óptimo dia dos solteiros, como costumo dizer!

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Quem se Interessa pela Cultura?


Afinal, quantas pessoas se interessam pela cultura?, se põem o problema da vida?, do homem?, se põem a interrogação sobre o que nos rodeia? É um erro tocante o imaginar-se que as pessoas cultivadas se interessam pela cultura. A cultura não vem nos livros, nem nos cursos, nem nas salas de conferências, espectáculos, exposições com uísque ou a seco. A cultura é um problema que tem que ver com os nossos cromossomas e tem a dimensão secreta, oculta, privada, íntima, de uma vivência sagrada. 

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 3' 

Fears


“Love takes off masks that we fear we cannot live without and know we cannot live within.”

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Autocarros vs. Palácios


Os autocarros parecem autênticos palácios. Palácios da consolação e da lamentação pagã.
Se trocassem por jóias todas as frases queixosas e insolentes que se ouvem mesmo de quem está de fora de um destes transportes modernizados, o país seria certamente um recurso inesgotável de luxo e garanto que a dívida pública seria algo acerca do qual não saberíamos nem o significado.
O que está aqui latente é a capacidade repugnante que o ser humano eleva ao ver-se somente feliz impugnando a tinta permanente nos outros os seus próprios problemas. É verdade meus caros, nós somos felizes a partilhar as nossas histórias, e gostamos que os outros as sintam tal e qual como nós sentimos. Gostamos de infligir a dor, gostamos que percebam que aquilo que sentimos é sempre pior, sempre mais forte, sempre mais doloroso, e sempre mais preocupante. Gostamos de ser mais, no bom e no mau. Para isso, vamos à prateleira buscar a receita: um misto de expressividade e dramatização, tudo muito bem batido, umas pitadas de sal na língua e uma dedada de pimenta, mais gritaria q.b. e voilá! Eis o sucesso para um autêntico espectáculo em praça pública, aconselho vivamente a quem queira dar nas vistas, garanto que dá um resultado absolutamente genial.
Depois dos autocarros, penso que o próximo passo sejam os centros comerciais. Qualquer espaço serve para uma dose familiar de contratempo.
Anyway, vou começar a andar muito mais vezes a pé...

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

A libertação da literatura


Não conheço nenhum outro processo de libertação tão eficiente como a arte. Mais esmiuçadamente, a literatura.
Para aqueles que apreciam a arte das letras e que nelas encontram a guarita de mais um dia de fadiga, não há nada mais tonificante do que uma boa frase, um bom texto, nem que seja uma boa anedota. Para os mais astutos, nada melhor que uma boa reflexão, nada mais revigorante que umas boas páginas de um livro, uns bons parágrafos e umas estilizações ágeis.
Não conheço, sem sombra para dúvidas, nenhuma outra maneira de libertar e refrescar a mente como esta.
A palavra “liberdade” implanta-se muito bem na literatura. Aliás, a literatura é liberdade, e a literatura evoca o chamamento da liberdade naqueles que a prezam. Ler é aspirar liberdade. Mas ler é, também, por conseguinte, adiar o que nos pertence: os constrangimentos, as frustrações, as preocupações, os desprezos, as angústias. Porque para sermos livres temos de nos desapegar daquilo que se apegava ao nosso ser, e quando lemos estamos a fazê-lo: estamos a ler os males de outros e a descolarmos os nossos, seja por horas ou por meros minutos. Isto quer ainda dizer que todos esses nossos males, ou são fruto da nossa leitura, ou são o desencadear da mesma. Ou são a explosão do que lemos, ou a construção aos poucos e poucos de novas realidades.
O escritor, porém, permanece o idílico homem livre. O homem livre que escreve, abstraindo-se do papel que coloca diante dele. Ou é, de facto, assim tão livre, ou então deseja sê-lo vivamente. Tão livre e tão ideal, ou tão sedento por não o ser. Tão perfeito aos olhos dos leitores, ou tão necessitado quanto estes últimos. Quer escreva um romance, quer aposte num drama, quer descreva um assassino em série ou uma criança inocente que perde os pais num acidente horrendo, o escritor é tão pouco livre nas palavras porque tem só aí de fazer uma pesada escolha. O escritor é tão pouco e tão nada que precisa de escrever para ver os fantasmas desabotoarem-lhe a camisa e deixarem-no respirar. O escritor é tão recluso da sua própria mente como a sociedade se vê reclusa da mente de outrem. E ainda assim, ambos anseiam ser livres, e a ilusão de que o são majestaticamente alimenta todo um processo de libertação inconsciente que nos mata, cega, engole, e deleita: a literatura.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Elogio ao amor


“Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo.
O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.
Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em “diálogo”. O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam “praticamente” apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do “tá bem, tudo bem”, tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?
O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso “dá lá um jeitinho sentimental”. Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar.
O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A “vidinha” é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende.
O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha – é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.”

Miguel Esteves Cardoso in Expresso

Ps: Este vale mesmo a pena ser lido até ao fim.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Teorias


Pensamos em quantas letras se escreve a palavra “vida” e já não cabem os números nos dedos das mãos. Pensamos nos livros encadeados e embalados nas bibliotecas, repletos por vocábulos dos filósofos que tentaram definir o conceito indefinível. Pensamos nas composições poéticas dos mais eminentes letrados, olhamos para as rimas e para as acentuações metafóricas a tentarem interpretar o que é a vida… mas nem nos poemas, nem nas teses vastas, nem na batalha da álgebra, nem mesmo na decadência das sociedades actuais, muito menos nas desprezíveis acções quotidianas rotineiras que nos preenchem as vinte e quatro horas de humor.
A vida é tão grande quanto nós somos pequenos, e é tão apassivante pensar que ela não cabe numa única teoria.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Dar? É um prazer!


A matéria permanente de qualquer que seja a relação: um ama mais que o outro. E um é menos amado, em prol do outro, que não ama tanto. Indiscutível é também que todos queremos amar menos e ser mais amados – quanto menos se ama, menos dói; quanto mais amados somos, mais satisfação se arrecada. Mas se toda a gente for tão egoísta ao ponto de querer receber mais do que aquilo com que paga, então porque é que miseramente perduramos a latejar por uma gota de suor romântico e ternurento que nunca chega, dando tudo o que há e que não há na nossa essência, em demanda do tal troco?
Uma das leis mais divertidas e sarcásticas da Natureza é esta: ama aquele dá, e é amado aquele que exige. “Vestir as calças”, como é hábito referir, é precisamente tarefa daquele que exige receber, que exige, automaticamente, ser amado. Mas se exige, constata-se facilmente que não ama, ou pelo menos não como se pensa. Porque amar, esse sim é o dom dos verdadeiros dadores, que se oferecem integralmente sem o horizonte de uma medalha para troca. Muito claro e perfeitamente compreensível: dar afigura-se num prazer muito mais inesquecível do que receber, e porquê? Porque a pessoa a quem oferecemos, para além de se tornar também ela inolvidável, passa a ser necessária. E como necessidades levam a outras necessidades, sendo esta nenhuma excepção, dar é um vício daqueles que amam, é a paixão sinistra e incompleta e é o balançar do envolvimento.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Perdoar sem Agravar



Sem comparação, é muito menor mal receber agravo que agravar alguém; ser injuriado que injuriar; e é melhor que outros te enganem do que enganes alguém, como, por sabedoria humana, chegaram a compreender gentios como Sócrates, Platão e Séneca. Lembra-te que é coisa de homens e conforme à fraqueza da nossa humana natureza sofrer engano ou errar. Por isso não leves tão a mal os pecados cometidos pelos outros, nem te sintas tão agravado pelo erro que cometeram contra ti.
Perdoar é próprio dos ânimos generosos, mas guardar rancor é coisa de homens ásperos e cruéis, baixos e de casta ruim; isto a mesma natureza o mostra nos animais mudos.

Juan Luis Vives, in 'Introdução à Sabedoria'

Schiele


"I do not deny that I have made drawings and watercolors of an erotic nature. But they are always works of art. Are there no artists who have done erotic pictures?"
Egon Schiele

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Sem saber


Tudo o que te peço todos os dias de manhã, bem cedo, é para quando fores embora, não me dizeres.
Podes vir deitar-te ao meu lado e aconchegar-me com o cobertor azul-bebé, ou então podes acordar-me de manhã e acariciar-me o rosto como se da tua própria pele se tratasse. Podes vir sentar-te comigo na lua e no fim, podemos nem dormir, de tão atentos que vamos ficar a observar-nos mutuamente. Podes fazer de mim a tua deusa e pintar-me tal e qual como não sou no real só para o ser nos teus sonhos. Podes vestir a camisola que te dei e fazer dela uma segunda pele. Acredita que podes fazer de tudo.
E eu nem sequer preciso de te ver para te sentir, porque o sentimento cega, ensurdece e pára tudo em nosso redor somente porque não estamos juntos. Até os ponteiros do relógio de parede da sala parecem adivinhar quando tu vais, quando eu vou, e param… param até tu voltares e até me veres de novo, como se nunca nada se tivesse passado na tua ausência. Imagina que até o relógio se suspende no fio da eternidade por tu não estares ao meu lado. E quando estás ele queixa-se com o seu tic-tac, porque sabe que enquanto estás está preso àquele sonoro e àquele balançar. Um dia abro o vidro do relógio e tiro os ponteiros. Eles ficam livres e nós cometemos finalmente a loucura de esquecer que o tempo realmente existe…
Se não fizer isso rápido, quando tu partires para sempre, os ponteiros também vão sumir contigo. Não te apresses, não corras, não partas nenhum vidro, não te exaltes com o chuva lá fora e vai em pontas para eu não sentir o mínimo incómodo. Quando saíres, por favor, não batas a porta, deixa-a encostada, e todos os dias à noite, não a chegues sequer a fechar, porque assim, quando precisares de a abrir, eu não vou ter de ouvir a maçaneta rodar.
Não te peço que me tragas um ramo de rosas uma vez por mês, muito menos o pequeno-almoço requintado. Não quero nenhuma mala nova nem nenhuma mensagem romântica.
Quando saíres, apaga todas as luzes, bem devagarinho, para eu não ter de ver a tua sombra escapar-se para o não sei onde e não sei porquê. Perder alguém sem saber é melhor do que perder e permitir, e como em mim não há nada que possa interpelar nas tuas decisões, teria de te deixar ir com o vento, como uma senhora de classe que perde o chapéu enquanto passeia à beira-mar.
Sempre te imaginei a sair da minha vida assim. Sem saber nem entender o porquê, saindo só, como um espírito inconformado e incongruente que não sabe para onde vai, mas que ainda assim, prefere ir. O segredo do nosso amor sempre foi eu aceitar essa tua ligeireza de ideias, mesmo sem perceber. Portanto, quando partires deixa a virtude do segredo e o raio de luz que nos iluminava permanecer na minha memória, até que ele se desvaneça sem eu dar conta.
Enquanto não esquecer, a porta do quarto continua aberta durante a noite.

Antevisões


O fruto proibido é o mais apetecido. Quem brinca com o fogo, queima-se. Quem desdenha quer comprar. Não deixes para amanhã aquilo que podes fazer hoje. Grão a grão, enche a galinha o papo. À noite, todos os gatos são pardos.
Os inevitáveis ditados diários que nos criam ou estereótipos ou brutas contradições mentais. Só existem para nos criarem ideias que se adequam à sociedade em que vivemos, nada mais. Só existem para fazerem de nós iguais uns aos outros, psicologicamente.
No entanto, ditados como estes vêm tirar a graciosidade que a vida nos releva de vez em quando, às vezes, ou até, sempre. O poder e a curiosidade da vida são o mistério e a contradição que ela nos traz.
Não digam que não, porque a verdade é que a vida é bela. É bela porque tem passado, presente e futuro. Tem passado que nos assombra e nos faz temer o presente, presente este que tem sempre um dom de ambiguidade, impulsividade e erro. Por fim, a vida tem o milagroso futuro, que, apesar do medo do passado e das sombras que ele acarreta, o futuro transporta o mistério do desconhecido, do improvável, do imprevisível, daquilo que não pode ser previsto e dado como certo, somente como possível. E como o futuro é inseguro, ele amarra cada pessoa à sua própria vida, só porque cada ser tem a curiosidade para conhecer aquilo que a entidade divina, quer exista quer não, tem para lhe mostrar.
O que para cada um de nós está intimamente reservado, é por nós já conhecido, e como tal, evitamos confrontá-lo, em busca de um milagre que altere aquilo que nós próprios somos capazes de profetizar.