terça-feira, 27 de abril de 2010

Desertificado



Acordou com o silêncio. O despertador que insistira determinantemente para não tocar, os pássaros que já não cantavam com raiar do sol. Fez deslizar o braço até ao seu lado direito mas a busca do calor foi em vão. Só o frio do que está vazio se situava do outro lado da almofada, o que o fazia então despertar de vez.
Não foi preciso afastar as cortinas e abrir a janela para sentir o cheiro a chuva a tocar o alcatrão, não foi preciso ligar a televisão para se aperceber das tragédias do mundo num piscar de olhos. Estava tão preso a si que a realidade lhe caía no estômago como um copo de leite numa criança. O tacto regulava-se pelas singelas texturas que encontrava aqui e ali involuntariamente, num andar arrastado e peregrino de quem não vive e não sente sem propósito algum. Eis que o seu olhar, negro de luto, já nem esse se deslocava para onde quer que fosse. Tinha perdido tudo aquilo para que se acostumara a olhar. Qualquer meta antiga era agora destronada pelo desgosto e pela melancolia, pela sua dramatização fiel do mundo real que morava consigo.

Nem uma pista do seu corpo, daquela alma tão puritana que ele tanto estimava, como se fosse sua. E era, de facto.

Restavam uns aromas nos cantos da casa, uns perfumes asfixiantes nos bolsos das roupas, umas fotografias e umas pinturas rasgadas pela brisa do que foge. Sobravam os seus olhos mortiços e fustigados de quem perdeu para sempre o seu objecto de vício, olhos de quem guarda para sempre uma imagem inalterável de amor, de uma utopia arruinada, de um juramento manipulado, de uma dependência doentia. Ela prometera-lhe que nunca o ia deixar, mas deixou, e partiu para sempre, partindo e nunca voltando, abandonando as origens, sendo levada para o desconhecido profundo e magnético. Morrendo.

Na sua cabeça estava ainda a dormir, um sono num abismo terrível, um abismo infinito. Não sentia nada, nem os sons dos carros na rua, nem o cheiro a tarte no forno, nem o gato que se encostava aos seus pés.

A saudade daquele que perece é a saudade mais cruel de todas, pois é uma saudade que não se pode quebrar, que não se esquece. E ele sabia que iria ficar assim para todo o sempre, que não ia passar, dissessem os vocábulos que dissessem, só ele sentia, só ele era capaz de entender o que lhe amarrava o peito, o que lhe apertava o pescoço, o que lhe esmagava as ideias, o que lhe dava uma vontade de gritar até sangrar as cordas vocais. Apenas ele se caracterizava agora pela revolta e pela mágoa, por um deserto de sensações e emoções que teimavam em permanecer nele, em fazê-lo falecer também. Melhor assim, talvez, pensava.

Foi até ao espelho, olhou as suas próprias faces. Inacreditavelmente, estava a chorar e as lágrimas estremeciam-lhe a cara rosada com uma velocidade mirabolante sem que ele próprio as sentisse. Escorregou as costas pela parede cor de pêssego e sentou-se no chão de madeira ténue. Era ali que também ele queria adormecer, permanentemente.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

De novo, Hoje


Tenho segredos a revelar. Confissões que nunca fiz e possivelmente jamais farei. Ideias especulativas que nunca me atrevi a referir. Opiniões injustas que escondo espontânea e voluntariamente, críticas a apontar que guardo só para mim, medo de represálias e de olhares indiscretos.
Não espero que me ouçam ou que compreendam, nem tenciono sequer contar aquilo que há muito mantenho em mim. Estou certa de que metade não é passível de interpretação alheia e de que apenas eu tenho a chave para o cofre, o código para decifrar as minhas mensagens. Não fico contente se me perceberem e espero o contrário de quem bem me conhece. Dispenso o sentimento mortiço de compaixão e relevo para o infinito incomensurável todas as frases depreciativas que possam surgir por hoje. Pois o hoje é só meu e estou a pensar afogar por completo as críticas, não que estas não sejam, quando aceites, a pura e única salvação do mundo, porque são, mas sim porque a frieza do momento não me permite avaliá-las quantitativamente. E o momento pede calma e reflexão, resmunga por perdão e perde-se indefinidamente nos meus pensamentos, moldados à minha maneira.
Vou soltar as rédias de um dia finito que já acabou, vou entrar no meu círculo, vou participar no jogo, vou sacudir os percalços, abalar o inabalável. E como o hoje é meu, e o amanhã é incerto, hoje fico-me pelos dias que passaram e perco-me no desvendar do futuro, no mistério dos dias que daqui passarão. E como hoje sou uma pessoa diferente, sei que amanhã o meu temperamento pode alternar. E tal como a lua, não tenho uma fase certa sem que para isso recorra à função matemática das probabilidades.
Vou andar descalça, vou soltar o cabelo, excarcerar os mártires e porventura, descativar as vontades. Desperdiço a vida com afirmações de que tenho de iniciar um novo ciclo, redesenhar uma etapa singular com mais ilustrações, nunca o faço. Vou rezar para que aconteça hoje.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Mantém-te original

Attitude


The longer I live, the more I realize the impact of attitude on life. Attitude to me is more important than facts. It is more important than the past, than education, than money, than circumstances, than failures, than success, than what other people think or say or do. It is more important than appearance, gift, or skill. It will make or break a company...a church...a home. The remarkable thing is we have a choice every day regarding the attitude we will embrace for that day. We cannot change our past... we cannot change the fact that people will act in a certain way. We cannot change the inevitable. The only thing we can do is play on the string we have, and that is our attitude. I am convinced that life is 10 percent what happens to me and 90 percent how I react to it. And so it is with you... we are in charge of our attitudes.


Charles Swindoll

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Delírio


Sento-me aqui e simplesmente dou por mim a pensar no absurdo que é escrever. Estou aqui meia parada no tempo, meia avançada no futuro e ligeiramente retida no passado, numa escala de zeros, enquanto podia sair com amigos, dançar, passear. Mas a verdade é que opto sempre por levitar num círculo muito meu, muito à parte do que é real, para me comprometer com as palavras que não são ditas em diálogo quotidiano. Juro e julgo que por vezes sinto que é mesmo ridículo desperdiçar tanto do meu tempo nisto, e ao mesmo tempo, sabe tão bem e desocupa-me a mente como mais nada nem mais ninguém o conseguiria fazer. Afigura-se como uma espécie de loucura ou capricho, um devaneio premeditado, um tipo abstracto de esquizofrenia, como se duas pessoas crescessem em mim e apenas uma se expressasse aqui, como se essa mesma vivesse as experiências de outra maneira, por outros pontos de vista, com outras emoções. Talvez seja por isso que sinto tanto e de modo tão forte tudo o que me cerca. É estranho de uma forma positiva, engraçado de uma forma negativa e inexplicavelmente contagiante, que deleita e concretiza. E assim como naquilo que escrevo, também em mim mesma existe uma parte subterrânea incansável, inexplorável, um mistério que não se sabe se é fidedigno e que nunca se consegue transmitir por completo pois denota problemas de expressão gravíssimos. Penso que é isso a essência da criação, a parte principal das obras de arte, a letra fundamental do abismo dos derradeiros pensamentos e sensações. Tudo aquilo que não se percebe é tudo aquilo que mais nos atrai.
Como uma doença: fechar-me no quarto a escrever, perder parte de mim em cada vocábulo, colocar um sentimento em cada sílaba, isso não é enlouquecer? Criar paradigmas em redor de tudo aquilo que penso merecer crítica, tornar heterodoxo aquilo que a sociedade considera correcto e praticamente sem falhas, não é perfeita loucura? E loucura não é, de certo modo, quebrar as regras, saltar as vedações, cruzar os limites, sair do contexto do “normal”? Sair dessa dada normalidade, combater todas essas legislações impostas e exigidas implora uma certa e demasiada coragem, segurança, ausência de medos, portanto, a loucura é um instrumento de vencedores, uma ferramenta de soldados em campo de guerra. No entanto, quem escreve acaba por não ser tão corajoso como queria, pelo contrário, quem escreve finge, quem escreve não actua, não confronta, não simplifica. Quem escreve não é louco pois detêm em si uma quantidade de sanidade que é mais que suficiente para deter e controlar toda a loucura em si existente. Quem escreve, tal como eu, tal como todos, quer se passe ou não a ideologia para uma folha de papel, ainda detém em si demasiados sonhos que acarretam demasiados medos, demasiados pontos fracos, demasiadas lágrimas, múltiplas impossibilidades, inúmeras fraquezas que são, para já, indestrutíveis. Quem escreve, quem pensa, quem sonha, é somente dono de um delírio planeado.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Virtude e (In)certeza


Os baús, as caixas de música, os papéis de embrulho, os laços coloridos, as telas escuras, os pincéis molhados, os cadernos de história, os lápis de cera, os instrumentos de trabalho do quotidiano que sublimam emotivamente os nossos pequenos segredos individuais que nem nós próprios estamos por vezes capacitados para decifrar.
Os dons e talentos, que se revelam nestes segredos e se escondem na aparência da vida, sempre tão subestimados por todos que não os reconhecem. Já é usual a virtude ser rasgada a meio pelo pecado e pelo vício que a engolem na sede da fortuna e da fama.
Virtude já não se usa hoje em dia. Caiu tão em desuso como a boa educação. A balança fica então tão leve quanto vazia, esquece-se o elevador que a trouxe e é atirada a proeza pela janela. Deixam-se decisões ao abrigo e suporte da nossa racionalidade certa, que às vezes nos ajuda mais do que a nossa sensibilidade insegura e mutável, porque às vezes é preferível fazer menos do que mais, deixar as coisas seguirem a vontade do acaso em vez de serem conquistadas e lideradas pela nossa própria sede de poder. Isto porque há realmente esperanças e desejos que são autênticas loucuras para se ter quando governadas nas nossas mãos.
A partir de hoje deixo a sorte levar o seu rumo e o meu, pois pelo menos ela eu sei que a não posso prever, como prevejo hoje tão bem as pessoas e comportamentos respectivos. Pelo menos a sorte e o acaso não tem dias de manifesto ou greves marcadas, coração leviano ou cabeça imatura. Pelo menos com ela a única e derradeira certeza que tenho é que certezas não existem nunca mais.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Cold Desert


I'm on the corner waiting for a light to come on
That's when i know that you're alone
It's cold in the desert, water never sees the ground
Special ones walk on without sound

Told me you love me, that i'd never die alone
Hand over your heart, let's go on
Everyone knowed it, everyone has seen the signs
I've always been known to cross lines

I never ever cried when i was feeling down
I've always been scared of the sound
Jesus don't love me, no one ever carried my load
I'm too young to feel this old
Nobody knows
Nobody sees
Nobody but me

Ainda


Ainda desejo a possessividade do tempo nas minhas mãos. Ainda desejo ser dona dele para não deixar que mais ninguém lhe toque. Ainda desejo aqueles dias de praia e de sol enternecedor, aquela areia quente e salgada a colar-se na pele. Ainda desejo acordar e não ter de lamber as feridas com sabor a mar que tanto sangue já me fizeram perder. Ainda desejo que tudo isto seja uma falta de reconhecimento, um erro meu de não discernir o sonho da vígilia, desejo que esteja agora a dormir e que este texto não seja mais de que um mero delírio. Se o não for, é porque os arranhões que vejo ao espelho, espalhados por todo o meu corpo são mesmo o fruto dos nosso actos irresponsáveis e inimagináveis que temos vindo a cometer desde que tudo se quebrou entre nós. Para além disto, ainda desejo perdidamente conseguir perdoar-te com todas as minhas forças, mas não consigo e exijo igualmente um teu perdoar por te guardar estes pequenos apontamentos rancorosos e de ódio, que são tão feios e vergonhosos, que me fazem tapar a cara quando passo por ti, fugir dos teus lugares e esconder-me dos teus massacres. Ainda desejo trocar o amor que se foi por um amor renovado por ambos e repensado nos menores dos detalhes. Ainda sonho com os meus próprios sonhos entre mim e ti que de realidade passaram para tristeza e de tristeza se tranformaram em vingança. Ainda desejo muito mostrar-te que consigo subir os rochedos mais altos sem que me dês a mão, que sou capaz de passar notavelmente nas provas mais difíceis sem ter de olhar para o teu formulário.
Mais importante de tudo é que ainda desejo mostrar-te o quanto te conheço e o quanto esse conhecimento não se perdeu na superioridade dos meses e na vastidão da distância e do sentimento que nos aparta.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Irreversível


Irreversibilidade não existe. Irreversibilidade é aquilo em que passamos a acreditar quando desistimos de algo. A escassez de esperança e as lacunas de coragem que crescem assemelham-se a uma falta de poder inalcançável que nos leva certamente a pensar que o que está feito não se pode anular. Mas não é bem assim. Se pensarmos mais e melhor na questão, podemos anular tudo, podemos alterar todas as situações e convertê-las de modo a que se desloquem a nosso favor novamente. É claro que não o faremos de forma singela e regular, muito menos fácil e leviana. Leva tempo, leva tempo, esforço e sobretudo uma vontade tremenda de continuar com a maré para o nosso lado. Se não remarmos o suficiente é lógico e previsível que a meta não vá chegar até nós sozinha: se não batalharmos por ela só sairemos vitoriosos se os oponentes se derem como vencidos, ou então morremos em campo, sozinhos e despedaçados. Quem estiver à espera desta última hipótese positiva, vai dar o seu luto tal e qual como deu o seu nascimento.
A paciência é um dom reajustável e raríssimo, díficil de encontrar, por isso temos hoje tanta “irreversibilidade” lado-a-lado. A manipulação radical do tempo nestas alturas, nas alturas passadas e naquelas que virão, não é algo que se possa fazer ao de leve e que se compreenda à primeira. É necessária aquela pletora de delicadeza e de graciosidade que nos permite revelar o tempo no próprio tempo, desenrolá-lo, interpretá-lo e curá-lo pacientemente, sem ter pressa de chegar ao fim. E para quem pensa que é impossível fazer tal, enganam-se. O tempo é como uma superfície rugosa, incerta, não-paralela aos acontecimentos da vida, sem linhas e sem margens de orientação, sem réguas e sem esquadros. É oblíquo e descontínuo e não leva uma ordem ou um padrão certos. Cada pessoa tem a possibilidade de medir as suas próprias horas, diversificar os seus minutos e aproveitar todos os segundos como se fossem os últimos. O ínfimo túnel da paciência só se alarga quando começamos a fazer isto com consciência e sanidade, com atenção e minuciosidade, quando começamos a endireitar os riscos da vida e do mundo na linha do tempo, mesmo que para isso tenhamos de riscar, rasgar ou impregnar o que já lá foi descrito.
Por isso, para aqueles que usam a palavra irreversível mais do que uma vez ao dia, reparem que talvez a irreversibilidade crónica de que tratam não seja tanto isso como se pensaria que fosse, evidentemente. Essa irreversibilidade prática e traiçoeira que tanto transcrevem nas situações ao acaso aparenta-se mais com uma falta de vontade, coragem e fé para retroceder mentalmente na escala cronológica e segurá-la com as próprias mãos, enquanto os nossos e vossos e todos actos futuros a traçam de novo, numa folha branca e limpa, nunca antes utilizada.

Ayo

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Desassossego

Volvi os olhos para as costas do homem, janela por onde vi estes pensamentos.
A sensação era exactamente idêntica àquela que nos assalta perante alguém que dorme. Tudo o que dorme é criança de novo. Talvez porque no sono não se possa fazer mal, e se não dá conta da vida, o maior criminoso, o mais fechado egoísta é sagrado, por uma magia natural, enquanto dorme. Entre matar quem dorme e matar uma criança não conheço diferença que se sinta.
Ora as costas deste homem dormem. Todo ele, que caminha adiante de mim com passada igual à minha, dorme. Vai inconsciente. Vive inconsciente.
Dorme, porque todos dormimos. Toda a vida é um sonho. Ninguém sabe o que faz, ninguém sabe o que quer, ninguém sabe o que sabe. Dormimos a vida, eternas crianças do Destino. Por isso sinto, se penso com esta sensação, uma ternura informe e imensa por toda a humanidade infantil, por toda a vida social dormente, por todos, por tudo.
É um humanitarismo directo, sem conclusões nem propósitos, o que me assalta neste momento. Sofro uma ternura como se um deus visse. Vejo-os a todos através de uma compaixão de único consciente, os pobres diabos homens, o pobre diabo humanidade. O que está tudo isto a fazer aqui?
Todos os movimentos e intenções da vida, desde a simples vida dos pulmões até à construção de cidades e a fronteiração de impérios, considero-os como uma sonolência, coisas como sonhos ou repousos, passadas involuntariamente no intervalo entre uma realidade e outra realidade, entre um dia e outro dia do Absoluto. E, como alguém abstractamente materno, debruço-me de noite sobre os filhos maus como sobre os bons, comuns no sono em que são meus. Enterneço-me com uma largueza de coisa infinita.

Fernando Pessoa

Sem Sentidos


Às vezes tenho a sensação de que comecei tudo a meio, porque no início já quase nem aproveitei nada, ou então não tive nem oportunidade de dar algo de mim em retorno. Por vezes parece-me que só a meio da história é que começo a sentir e a viver com a qualidade que as coisas exigem de mim e delas mesmas. Outras vezes parece-me que estou sempre a mentir, que não digo nada certo, e que as minhas palavras deixaram de ter aquela lógica que lhes era tão característica. Parece que o que digo num dia ao ser sincera, posso estar a dizer no dia seguinte, a mentir. E sinto que me engano a mim mesma e, consequentemente, a tudo o que me cerca e engloba. Como se estivesse a perder tempo com coisas que não interessam a ninguém ou que então não têm razão de ser. Ou não me conheço ou já não sei o que faço, ou o meu coração se mistura com o meu cérebro ou o cérebro com o coração ou fico só confusa e baralhada e perco-me no meio da loucura e da certeza. Fundo-me completamente na noção de realidade, dou por mim a pairar num mundo que não corresponde ao meu, onde nada me agrada ou desagrada. É simplesmente irrelevante e insignificante, como se eu não fosse minimamente capaz de criar em mim uma opinião sobre algo e a justificar posteriormente, como se por momentos bem breves eu deixasse de funcionar. Um apagão total, uma escassez de sentimentos, um desligar de sentidos.
Como quando estou a fazer a cópia de um desenho em papel vegetal. Estou concentrada, estou a conseguir, as linhas batem certo, estão perfeitas, um som, um barulho, uma luz mais forte, falho a linha. Um milímetro de grafite desperdiçado um pouco para a direita do papel, em vez de se manter paralela à linha contínua que eu tanto preservava do lado oposto. Se calhar devia ter usado uma régua. Se calhar, mas, ou então, talvez… fica tudo tão relativo e o máximo que faço é sentir-me a desfalecer, uma vez que já não possuo qualquer tipo de base e qualquer contorno do que faço, digo, ou penso tem uma aparência despedaçada e inconectável.
Agora, agora sinto-me fria, sinto-me abstracta e incongruente como as peças de um puzzle velho com defeitos nos encaixes. Precisamente, será que já não encaixo? Que já não existe um lugar para mim algures? Todos me dizem que pareço tão livre, mas eu, eu sinto-me mais do que presa. Sinto-me sufocada.

domingo, 4 de abril de 2010

Novos Capítulos


Aquela corrente que carregava ao pescoço? Libertei-me. Aquele peso que transportava na coluna? Libertei-me. E a mala imaginária que arrastava para todo o lado? Agora deixo-a em casa todos os dias. Agora estou nua e é assim que vou ficar, é assim que me sinto mais livre: escolhi ficar assim, escolhi deixar a vida de antes e criar uma nova, desde o princípio.
Há dias na nossa vida em que deixamos de olhar para o momento seguinte e paramos num ponto decisivo. Nesse ponto só há duas opções: continuar a escrever na mesma página ou acrescentar um novo capítulo. Mas diga-se já de passagem que livros sem capítulos, sem mudanças de cenário, entradas de personagens e alterações no discurso não são lá muito apelativos. Contudo, acrescente-se também que para iniciar um novo capítulo são necessários recursos à parte. Para começar, precisa-se de mais papel, o que nem é muito mau, pior é a criatividade para o título, a mudança de tom que vamos ter de usar e o facto de não querermos parecer fúteis na nova etapa. E se quisermos ser mesmo originais, vamos precisar de outra caneta, com outra tinta, para continuar a escrever. Podemos alterar o tipo de letra, podemos pôr tudo a itálico ou a negrito, podemos fazer ilustrações. Tudo o que quisermos está ao nosso dispor.
Os livros são como as pessoas. Mas nas pessoas não são as canetas a escrever, são as experiências, e não se podem apagar ou riscar, às vezes não se podem sequer, escolher.

A Carta


Sol. Brisa leve. Outono. Folhas castanhas caídas pelo chão. Carros a passarem. Um pequeno parque, tradicional, bancos verdes, estragados pelo tempo, com pés de ferrugem e acentos cheios de maresia. As árvores fazem sombreado nos bancos e nos caminhos de terra pelo parque. Os bancos estão frios, o sol não chega para os atingir. Do outro lado o paredão, as bicas de água para os ciclistas e praiantes, os guarda-sóis que ali costumavam estar, que quase não deixam ver o mar, que já não habitam mais ali nesta época. E mesmo que habitassem, a maré está cheia e bem viva, vêem-se bem as ondas a rolarem a areia, agitadas, violentas como nunca e como sempre. É tarde demais, o ano já está a chegar ao fim e os praiantes são poucos ou nenhuns. Inteligentes esses poucos que não se deixam abater pela falta de sol e persistem no mergulho diário.
Do lado direito, frente a frente com o parque, de costas para o mar, um banco. Não é verde, é de pedra, é cinzento, é ainda mais frio. Ao lado, a paragem do autocarro, vazia, parece-me. É aí que ela chega, cheia de vida a correr na pele, mas com escassez da mesma nos olhos. Vem devagar a olhar o mar, a sentir o odor e a cumprimentar as senhoras gaivotas que ainda rezam por algum peixe na costa. Traz o brilho que faltava, que se dantes já era muito, agora simbolizava abundância. 
Sentou-se no banco de pedra a olhar as árvores do outro lado da rua. Fez um caminho de uma hora de casa até ali, gastou dinheiro em transportes só para ficar ali sentada durante ligeiros minutos, não é fascinante? Sabia-lhe bem estar ali, ali ninguém a conhecia, ali ninguém sabia o porquê de ela ali estar, o porquê de precisar daquele tempo, o porquê de todos os porquês que se interpunham mediaticamente na sua cabeça e que não lhe davam as dízimas de sossego de que tanto estava a precisar. «Férias longínquas, isso sim era uma óptima ideia», eram as palavras que ela concluía, todas as vezes que pensava. Os seus sentidos estavam ao rubro, mais atentos do que nunca, se calhar devia fazer uns exames, aquilo não era normal. Pulsação no auge, Respiração fugaz, um contraste para com os dias em que o coração mal se sente bater no seu peito.
Depois de já ter visto as folhas, os raios distintos de sol, as gotas de orvalho matinal que ainda ali permaneciam, levantou-se novamente, mas ficou ali, de pé, admirar a madrugada sonolenta. Tinha de ir, tinha de ir para casa, tinha de se sentar e escrever-lhe uma carta. Tinha de lhe pedir desculpa, de lhe dizer que o assunto ainda não estava resolvido, muito menos acabado, que as palavras de sangue frio não deviam jamais ser levadas a sério, que se arrepende muito e que quer voltar atrás, que não consegue viver assim, que está cansada e não sabe se consegue, ou quer, continuar.
Voltou costas ao banco, despediu-se do mar, acenou às árvores, correu o caminho de volta, apanhou um táxi, saiu à porta de casa, correu pela porta dentro, subiu a escadaria de rompante, empurrou a porta do quarto, trancou-se a sete chaves, rasgou as folhas dos cadernos, pegou na caneta, escreveu. Escreveu até não poder mais. Escreveu até ganhar feridas nos dedos. Escreveu até sentir que a alma já não estava em si, mas sim no papel. E depois disso, tirou o coração e colou-o na folha também. A caneta ficou sem tinta assim como ela que ficara agora vazia por dentro. Já não sentia nada de nada, só aquelas folhas que tinha na mão lhe activavam o tacto, mas mais nada a mantinha desperta.
E enviou a carta. Leu e releu, incontáveis vezes, o endereço e a identificação do destinatário, para que tivesse a certeza de que tudo estava devidamente corrigido, perceptível, certo, dentro dos parâmetros, para lhe dar a certeza de que ninguém se iria enganar na entrega, que tudo correria como planeado, que depois daquilo, o retorno era inevitável, ou não estaria ela a dar do seu próprio sangue numa carta a algo ou alguém por quem não tivera deveras a certeza dos seus actos. Estava ali a sua alma, a sua mente, os segredos, as confidências, as mágoas, o que não pode ser dito, lado a lado com tudo aquilo que se pode dizer, quase num pecado capital que já ninguém comete por ninguém.
Marco de Correio. Correio com urgência. Pessoas a passarem. Um bebé num carrinho, uma mãe cheia de sorrisos. Um ciclista cheio de suor e cansaço. A carta a escorregar por entre aquela entrada minúscula, a desaparecer por entre os seus dedos finos e delicados, porém magoados, após tanta escrita. Voltar para casa, não sentir nada, arrumar o quarto, sem sentir nada, almoço de família, sem saborear os alimentos, beber um copo de água e sentir que se está a flutuar no vazio.
Uma semana, duas. Um mês, dois, seis, oito meses. Um ano, um ano e meio. Três anos. O nada continua, não há resposta, nada foi retribuído, nada permanece, nada se restitui. Nada.
Ou se enganara no endereço, ou as palavras já não podem expressar sentimentos, almas e pensamentos, nunca irão recuperar o que foi perdido.
Se está perdido, não se recupera.

Melhores

“Even though we've changed and we're all finding our own place in the world, we all know that when the tears fall or the smile spreads across our face, we'll come to each other because no matter where this crazy world takes us, nothing will ever change so much to the point where we're not all still friends.”



Há coisas que não se esquecem, momentos que ficam para a história e pessoas para os acompanhar. Há pessoas e pessoas: aquelas que visitam a nossa vida periodicamente, perguntam "Tudo bem? Já não sabia nada de ti há algum tempo..." e depois voltam a desaparecer por etapas; aquelas que passam uma vez, acendem as velas do nosso quarto, iluminam o nosso caminho, mas apagam-no de seguida, sem darem tempo para descobrir a essência delas mesmas; aquelas que passam e nem sequer chegam a acender as velas; as mais constrangedoras, que passam, acendem as velas, iluminam, apagam as velas, acendem de novo, voltam a apagar, deitam-se na cama, mexem nas nossas gavetas e de súbito, levantam-se, abrem a porta e saem da casa sem se despedirem; e as melhores, que entram em casa, mexem nas gavetas, esvaziam o nosso frigorífico, chamam "mãe" à nossa própria mãe e, mesmo quando lhes dizemos "Sai!" insistem em ficar e ainda têm a lata de dizerem barbaridades do género "É para o teu próprio bem". Eu, sinceramente, ainda estou para perceber porque é que somos tão rudes com estas últimas, porque é que às vezes não lhes ligamos nenhuma e as ignoramos por completo, e mesmo assim, não saem de lá de casa. Torna-se impressionante, pois aconteça o que acontecer, passe o tempo que passar, e mesmo que a casa mude de sítio, mais que uma vez, aumentando a distância, mesmo que as possibilidades e ocasiões sejam de desânimo e nada propícias, essas pessoas continuarão a encher a casa, mesmo sem estarem presentes nela.
Pela minha vida já passaram todos estes tipos de pessoas, só lamento piamente que só ultimamente tenha aprendido a agradecer àquelas que me dizem "Não, eu não saio daqui, isto é para o teu bem".

Artes


É tão fácil fazer promessas e juras perenes, quando a sociedade não permite nada eterno actualmente. É tão simples e redundante falar sobre os actos quando as palavras não são às vezes sequer capazes de os descrever de modo viável.
Conjugar verbos, adicionar prefixos, misturar advérbios e combinar nomes é um manuseamento fraco e retorcido da vida. Nunca estas míseras palavras vão ser suficientemente suficientes para coordenarem a vida de alguém. “Uma imagem vale mais do que mil palavras”. Troquemos “imagem” por “acto”, não faz agora tudo muito mais sentido? Se nos concentrássemos todos neste tipo de pensamentos tenho a certeza absoluta de que o mundo estaria em melhor estado. Mas não está, não está precisamente porque o remédio de todo o acto é a palavra, que por ser reconfortante e libertadora passa a ser usada como medicamento pontual para os casos mais graves de actos que não foram convenientemente medidos. O que é isso? Que são as palavras senão meros escapes pessoais para os problemas reais do quotidiano?
O que estou aqui a fazer é exactamente isso: libertar-me daquilo que sinto, e como não vejo actos, ou não tenho coragem para os pôr em prática, imagino-os numa folha de papel, ou num ecrã de computador. Os pintores usam as telas, as tintas e os pincéis, e traduzem uma realidade que é só deles. Bailarinas expressam contentamento ou falta dele nos palcos, ao som das sinfonias, dos músicos que as compuseram com a inspiração dos seus problemas, ou das suas felicitações da vida. Actores e actrizes sobem para os teatros ou para as nossas televisões para interpretarem personagens fictícias de histórias que sonham para que se concretizem. São formas de arte. Manipulações preciosas do subconsciente humano para que possamos ser aquilo que queremos sem dar um único passo nos abismos do mundo. Teatralidades triviais e translúcidas, representações esquemáticas e influenciáveis daquilo que queremos ser, que queríamos fazer e que não fizemos, que vimos e que não aproveitamos, cópias mentais de uma realidade não existente. Arte.
Já dizia Fernando Pessoa, e não em vão com certeza: “o poeta é um fingidor/ finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor”. Pois é, e o poeta, o escritor, o pintor, o bailarino, o actor e afins não são mais que isso: fingidores. É para eles que todo o mérito é recambiado, uma vez que conseguiram traduzir minuciosamente as suas utopias. No entanto, mais mérito têm aqueles que as conseguem realizar.

sábado, 3 de abril de 2010

Esperar

Agora vim até aqui escrever um bocado. Daqui a cinco minutos vou estar deitada na cama, a pensar em ti. E tenho a certeza de que ainda iria a tempo de vestir-me decentemente, colocar o imprescindível na mala, pôr o habitual eyeliner e o meu típico rímel, pegar nas chaves de casa e no telemóvel, sair pelo portão desenfreadamente e ir ao teu encontro. Podia, claro que podia. Podia entrar em tua casa, levar-te até ao teu quarto, encostar-te contra a parede, rasgar-te a roupa, juntar o meu corpo ao teu como se não houvesse amanhã. Podia, claro que podia. Podia ficar abraçada a ti toda a noite, podia encher-te de beijos e mexer-te no cabelo, podia ouvir os teus sussurros ao meu ouvido, e as tuas promessas apaixonadas, podia passar o resto da semana ao teu lado. Podia, mas não o faço. Vou ficar aqui deitada, com a certeza de que tu também estás aí deitado, com a certeza de que o que sentes por mim é uma cópia fiel do que sinto por ti. Sei que o teu desejo e tua busca inconstante têm razão em mim, assim como o meu desejo se baseia unicamente em ti, isso tranquiliza-me.
E sei que depois de tudo, sentir este desejo e protegê-lo sem o saciar durante algum tempo não nos fará nada mal. Vamos esperar?

Vida por palavras


Enquanto as cidades adormecem e me escondem, para me poder abraçar ao meu mundo, acendendo os meus sentidos com o brilho do luar, para me deixar planar, até sentir que tudo pára em meu redor, para só depois, só depois de dar a volta ao mundo, rodopiar por vales e areais, desenhar múltiplos corpos num só para não me esquecer das suas formas, só aí, percebo o calor do frio que vem da miragem, e devagar, devagarinho, se entende a distância entre o silêncio e a voz, que guardo bem no fundo de mim.
Compreendo que a vida não é breve. Estende-se, por paisagens frescas e singelas, por guerras frias e pálidas, por desertos asfixiantes e áridos, ultrapassa o avesso da paixão e ainda se reanima quando respira o ar rarefeito e molhado do amor. Afoga-se em memórias e lembranças que esquecem o peso do tempo largo, e recordam os bons tempos de infantilidade e despreocupação, das bonecas de porcelana e dos carros em miniatura, do pontual baloiço, do escorrega, dos carinhos da mãe e das cócegas do pai. Mas volta, o amor, que o mundo alcança, do mundo parte e ao mundo se sobrepõe, insconstante e inseguro, como se quisesse sair e salpicar os seu pedaços no mais escuro chão, para que todos vejam os seus vidros quebrados.
“Vida”, que em quatro letras conjuga a diversidade planetária, o inteligível e o ininteligível, unidos por um fio invisível e imperceptível à humanidade, que teima em renegar aos múltiplos conceitos do paranormal inevitável, ou talvez, da mais respeitável e simples complexidade do ser. Em tão pouco se alberga tanto, num bailado de cores, de ilusão, de cheiros, de paladares e de sons, instáveis, paralelos, relacionados nas nuves, nas bolas de sabão do subconsciente improvável, na luz que entra pelas janelas dos quartos, cheia de pensamentos em forma de estrela, levados a bordo de uma viagem, onde o vento é comandante que não conhece o rumo, lado a lado com a brisa ténue que sabe a vazio e a neutralidade.
Um prédio, um edifício alto que requer cuidado na subida. O primeiro piso nasce, o último morre, com a sina nas mãos, abertas e serenas, numa angústia perene. Os degraus entre eles são só a perda de tempo e a demonstração de existência de cada um dos seus breves e dificultados patamares. Esfacelada e triste, sobe a vida por um muro escarlate, pintado de sangue, tentando esquecer as batalhas alheias de um lugar à parte, onde se esquarteja e se mata sem pudor ou remorso, morticínio incessante e desmedido, imposto por muralhas erguidas em volta do peito, que não permitem partidas ou chegadas.
Ter vida é ter história, é fazer memória sem a ter, é dar amor sem pedir para receber. Vida é como uma pena leve que descai dos ares incongruentes até tocar o chão, onde esmorece mas não esquece, parte mas não morre, pois o coração é capaz de manter a vida eterna. Vida, que existe em tudo, para tudo e por tudo, e ainda sobra para oferecer, já carregada de ternura e expressão, com o destino escrito a permanente, por preto no branco, numa parede de cetim a cheirar a baunilha funérea e desalinhada, atrás dos perigos e das amarguras, escondendo-se num fretenir estranho e pantagruélico, cheio e tudo, completo de nada.
Ainda assim alcança sem descanso, e quando descansa volta a alcançar, num corrupio de sentimentos e emoções, e sonhos, pois nunca ninguém se esquece de sonhar. E é só isso que a vida implora, de forma sábia e pecadora: um misto de sensações congratulantes e específicas, em abraços e beijos, e prazeres que nem sempre nos podem dar, que não mordem e não traem, não enganam e não fogem sem motivo, que inexplicavelmente não tem explicação possível e passível de ser traduzida fisicamente. Sinestesias completas, onde se interpretam os mais inegáveis amores, como o amor da amizade, ou o amor que existe na ternura, que se aglomeram formando o amor do amor, o amor da paixão e da loucura, da insanidade pervertida, tudo num só, criando algo de tão belo e tão perfeito que se soma e se aglutima com a realidade e com o sonho, com o tudo, desfazendo-se do que não é nada, como se de tudo fizesse parte, como se de tudo fosse essência e razão, de dever e obrigação, como se fosse pura vida e simples arte, como que se de amor com amor fizesse parte.
Ridícula e abstracta é esta vida em que vivemos, com cada uma de outras muitas vidas nos braços, hospitaleiros, em regatas naufragadas pelo vento, pela dor dos caminhos e pelo peso dos dias, que esbatem o sal colado à flor da pele, dando acidez a um mergulho com destino ao irrisório infinito, onde nada é pedra e tudo é papel, onde se escreve e se sonha simultaneamente, onde a imaginação abre as suas asas de condor e abarca o universo saturado de fel.

(premiado no Concurso António Botto e Jorge de Sena, 2009)

Não é certo


Hoje percebi uma coisa. Percebi que não consigo. Percebi que todos os dias que me passam a voar pelas mãos estão agora a representar os dias que passaram desde que nos perdemos. Não se trata de te ter perdido ou de tu me teres perdido. Trata-se de nos termos perdido individual e conjuntamente. O facto aqui é que já não me recordo, depois de todo este tempo, tantos meses passados, tantas horas em vão, sentada nas escadas a olhar a paisagem pela janela e a contar as gotas de chuva a cairem no chão, não me consigo recordar de um único momento em que não te tenha amado com todas as minhas forças.
Acontece que aquela frase mítica de amar mais hoje do que ontem, menos do que amanhã e sucessivos que tais, para mim não tem mínima ponta de significado. Porque tenho a certeza que dei o meu máximo, o que pode parecer egocêntrico e prepotente, mas não é. É realidade, uma coisa que até há pouco tempo não quis aceitar ou acreditar e que agora vejo com bons olhos. Com olhos de quem repara, de quem analisa, não de quem simplesmente se conforma com a mera espectação. Até hoje, pensava que não resultara porque não dei o que devia ter dado, porque me fechara em copas e nunca mais deixara que me abalasses como fizeste. Mas não, se isso tivesse acontecido mesmo, eu nunca teria sequer deixado que te aproximasses, vezes e vezes sem conta já depois de tudo ter acabado. E ainda assim, até hoje deixei que isso acontecesse, e permiti que continuasses a ser dono do que não é teu durante o tempo em que eu queria não ter dono. Mas essa autoridade mássica que tinhas, e em parte, ainda tens, sobre mim não se traduz na nossa de sintonia de sentimentos antiga e profunda que partilhávamos. Não, agora traduz-se num misto de rancor, de incerteza, de compaixão com algo que não sei explicar, que não sei se lhe posso chamar ainda paixão ou se é pura e singela necessidade.
O que sinto nem sempre é deveras sentido e passa às vezes por um sentimento quando é apenar a necessidade de o ser. Tem dias que sinto, somente porque quero sentir, e não porque o coração me pede. Sentir-me amada e sentir que amo é um bem precioso, faz-me bem à saúde, aumenta-me o ego, faz com que tudo seja vivido mais intensamente. Mas desde o momento em que percebo que já não amo, perde-se a graça e vira-se a desgraça. Esqueço tudo só para voltar a lembrar e o conjugar dos verbos torna-se mais penoso do que antes. E nesse mesmo momento percebo que grande amor não é aquele que se diz parar o coração com o primeiro olhar; é aquele que pára o mundo todos os dias da sua história, que faz da história um pequeno e interessante mundo, que tranforma tudo e todos, que é capaz de mudar aquilo que se pensava impossível mudar.
Todo um novo capítulo é capaz de se iniciar à minha vontade, e eu estou determinada para ele, e vou dedicar-me a ele. A medida do meu ser é esta mesma e eu não tenciono recolhê-la na sua caixa de magia, nem guardá-la no baú dos segredos.
O meu mundo já não pára por ti.

Be Stupid


Achei mesmo muita piada a esta campanha de Verão da Diesel. Esta marca já desde há muito nos tem vindo a habituar com cartazes marcantes e completamente distintos do resto da indústria, sempre cómicos e entusiasmantes, mas este, em particular, considero um espanto, porque para além da naturalidade com que retratam as situações, das imagens fantásticas que nos apresentam, do carisma dos modelos e da química que todos eles têm entre si e que fazem transparecer nas fotografias, conseguem, realmente, passar uma mensagem de forma bastante explícita até.
Para além de estar original e captar a atenção de qualquer espectador, é um elemento dinamizante de populações, sem sombra de dúvida. Remete-nos para o facto de que, por vezes, se calhar, pensamos demais e não o deveríamos fazer. Em certas alturas é necessário despir a intelectualidade quântica dos tempos modernos, a racionalidade analítica e as idealogias da sociedade, é necessário cometer loucuras, não pensar nas consequências e fazer da vida um autêntico carrossel, nem que seja só por meros segundos, pois, a verdade, é que no futuro, vão ser esses meros segundos que vão estar gravados na nossa cabeça, e não os míseros momentos que gastamos a pensar e a planear o dia de amanhã. Isso tudo acaba como apontamento muito auxiliar mas também muito apagado.
So, let's be stupid, shall we?

Laranjas No Ar

Pega no telefone e liga-lhe, não tens nada a perder. Diz-lhe que tens saudades dele, que ninguém te faz tão feliz, que os teus dias são secos, frios e áridos, como um deserto imenso, sem oásis nem miragens, sempre que não estão juntos. Pega no telefone e liga-lhe. Se ele não atender, deixa-lhe uma mensagem. Ou então escreve-lhe uma mensagem a dizer que queres estar com ele. Não te alongues nem elabores, os homens nunca percebem o que queres deixar cair nas entrelinhas. Tens de ser clara, directa, incisiva. E não podes ter medo, porque o medo é o maior inimigo do amor. Cada vez que deixares o medo entrar-te nas tuas veias, ele vai gelar-te o sangue e paralisar-te os nervos, ficas transformada numa estátua de sal e morres por dentro.
A vida é uma incógnita, hoje estás aqui, amanhã podes ficar doente, ou cair-te um piano em cima quando fores a andar na rua. Ainda há pessoas que atiram pianos pela janela, sabias? Nunca se sabe como será o dia de amanhã, por isso não percas tempo: pega no telefone e liga-lhe. Tenho a certeza que ele te vai ouvir, tenho a certeza que ele te vai ajudar, tenho a certeza que ele, à sua maneira - e é tão estranha a forma como os homens gostam de nós - ainda gosta de ti. Mesmo que já não te ame, ainda gosta de ti, como tu vais aprender a gostar dele, quando a vida te obrigar a desistir deste amor. Ele está longe, mas olha por ti por entre memórias, presentes e flores. À noite, entre sonhos alterados pelo álcool, tu apareces-lhe na cama e ele volta a sentir o cheiro da tua pele e volta a amar-te com todas as suas forças. Ainda que não acredites, tu viverás para sempre nele, tal como ele vive em ti, na memória das tuas células, num passado que pode ser o teu escudo, mesmo que não seja o teu futuro.
Pega no telefone e liga-lhe. Fala com ele de coração aberto, diz-lhe que o queres ver, chora se for preciso, pede-lhe que te diga se sim ou se não. Se for preciso, por mais que te custe, pede-lhe para te escrever a palavra NÃO. Pede-lhe uma resposta para o teu coração. Mais vale saberes que acabou tudo do que viveres com as laranjas todas no ar, qual malabarista exausto, sem saberes nem como nem quando elas vão cair. Mais vale chorar a tristeza de um amor perdido do que sonhar com um oásis que se transformou numa miragem.
Pega no telefone e liga-lhe. Liga as vezes que forem precisas até conseguires uma resposta, a paz de uma certeza, mesmo que essa certeza não seja a que desejavas ouvir. Mas não fiques quieta, à espera que a vida te traga respostas. A vida é tua, tens de ser tu a vivê-la, não podes deixar que ela passe por ti, tu é que passas por ela. E quando todas as laranjas caírem, apanha-as com cuidado, guarda-as num cesto e muda de profissão. O circo é para quem não tem casa nem país, não é vida para ninguém. Guarda as laranjas num cesto, leva-as para casa e faz um bolo de saudades para esquecer a mágoa. E nunca deixes de sonhar que, um dia, tal como eu, vais encontrar alguém mais próximo e mais generoso, que te ensine a ser feliz, mesmo com todas as pedras que encontrarem no caminho.
Larga as laranjas e muda de vida. A vida vai mudar contigo.


Margarida Rebelo Pinto