terça-feira, 29 de março de 2011

Rir


A nossa situação já nem sequer dá azo a muitas críticas ou dissertações. O assunto não está encerrado mas está, com certeza, mais do que enterrado. E porventura, bem lá no fundo, perto do sufoco.
Na minha opinião, chegamos ao patamar em que a melhor crítica e a mais poderosa é sem dúvida a gargalhada. O governo cai? Rir. O IVA sobe? Rir. Corrupção? Rir. Opressão? Rir. O riso não é um sentimento, não é uma palavra, não é tão pouco um pensamento, não cria nada, mas destrói. A política pode tomar o rumo que tomar, a atitude que quiser e bem lhe apetecer, que o mais correcto nesta altura é dar uma gargalhada bem alto. Pode ser que um dia destes o parlamento reúna todas as gargalhadas e se ria com o resto do povo. 

Prémios



Gostava de perceber porque é que as pessoas tanto sentem a necessidade de verbalizar tudo e mais alguma coisa. Gostam de pensar nos porquês, e nos mas, e nos ses, e nas razões e nos motivos, e nas justificações, e acabam por não perceber minimamente aquilo que tentam decifrar mas continuam desenfreadamente atrás de uma explicação que na maior parte das vezes não existe.
Nesse aspecto, tudo aquilo que adquirimos na vida acabam por ser simples prémios que não têm qualquer mérito. Por exemplo, quando um homem diz a uma mulher que a ama, e que a ama porque ela sabe cozinhar o prato favorito dele, porque ela não olha para outros homens e é decente, porque é inteligente, porque é sensível e porque espera por ele todos os dias. Alguém se sente realizado com isso? Optava mil vezes por alguém que me dissesse que é louco por mim apesar de eu ser fria, calculista e manipuladora, sem saber porquê.

domingo, 27 de março de 2011

Respiro o teu corpo


Respiro o teu corpo:

sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.

Eugénio de Andrade

quarta-feira, 23 de março de 2011

Portugalite


Entre as afecções de boca dos portugueses que nem a pasta medicinal Couto pode curar, nenhuma há tão generalizada e galopante como a Portugalite. A Portugalite é uma inflamação nervosa que consiste em estar sempre a dizer mal de Portugal. É altamente contagiosa (transmite-se pela saliva) e até hoje não se descobriu cura.
A Portugalite é contraída por cada português logo que entra em contacto com Portugal. É uma doença não tanto venérea como venal. Para compreendê-la é necessário estudar a relação de cada português com Portugal. Esta relação é semelhante a uma outra que já é clássica na literatura. Suponhamos então que Portugal é fundamentalmente uma meretriz, mas que cada português está apaixonado por ela. Está sempre a dizer mal dela, o que é compreensível porque ela trata-o extremamente mal. Chega até a julgar que a odeia, porque não acha uma única razão para amá-la. Contudo, existem cinco sinais — típicos de qualquer grande e arrastada paixão — que demonstram que os portugueses, contra a vontade e contra a lógica, continuam apaixonados por ela, por muito afectadas que sejam as «bocas» que mandam.
Em primeiro lugar, estão sempre a falar dela. Como cada português é um amante atraiçoado e desgraçado pela mesma mulher, é natural que se junte aos demais para chorar a sua sorte e vilipendiar a causa comum de todos os seus males. Assim sempre se vão consolando uns aos outros. Bebem uns copos, chamam-lhes uns nomes, e confortam-se todos com o facto de não sofrerem sozinhos. Às vezes, para acentuar a tristeza, recordam-se dos bons velhos tempos em que Portugal, hoje megera ingrata que se vende na via (e na vida) pública, era uma namorada graciosa e senhora respeitada em todos os continentes. E, quando dez milhões de lágrimas caem para dentro do vinho tinto que seguram nas mãos, todos abanam as cabeças, dizendo em uníssono «e hoje é o que se sabe...».
Não é só o facto de não saberem nem poderem falar noutra coisa que prova a existência duma paixão. Como qualquer apaixonado arrependido, o português acha Portugal má como as cobras, mas... lindíssima. O facto de ser tão bonita de cara (as paisagens, as aldeias, a claridade, o clima) só torna a paixão mais trágica. O contraste entre a beleza à superfície e a vileza subterrânea dá maior acidez às lágrimas. É por isso que só há um tabu naquilo que se pode dizer de Portugal. Pode dizer-se que é bárbara e miserável, traiçoeira e ingrata, e tudo o mais que há de aviltante que se queira. O que não se pode dizer é «Portugal é um país feio». Nunca. Também neste aspecto se comprova a paixão.
Em terceiro lugar, os portugueses só deixam que outros portugueses digam mal de Portugal. Só quem sofreu nos braços dela (e que ela vai tratando ignobilmente a seu bel-prazer, por saber que nunca lhe hão-de fugir), se pode legitimamente queixar. Isto porque Portugal, sendo uma lindíssima meretriz, engata os estrangeiros descaradamente, desfazendo-se em encantos e seduções para com eles. Esta ideia exprime-se no dogma nacional que reza «Isto é bom é para os turistas», como quem diz «A viciosa da minha mulher a mim não me dá nada, mas atira-se a qualquer estranho que lhe apareça à frente». Qualquer estrangeiro que tenha a ousadia e o mau gosto de se fazer esquisito frente aos avanços despudorados de Portugal está condenado ao maior desagrado de todos.
Esta atitude é lógica, porque só há uma coisa pior do que se ser atraiçoado por quem se ama — é não se ser atraiçoado só porque o outro a acha feia e não a quer. À traição da mulher junta-se o insulto do outro, ao não achá-la sequer digna de um pequenino adultério. É como dizer-nos: «Não só estás apaixonado por uma pega, como ela é feia como breu.».
Os estrangeiros que nos visitam nunca compreendem isto. Lêem e ouvem dizer por todo o lado as maiores infâmias acerca de Portugal e não percebem porque é que todos lhe caem em cima no momento em que ele se atreve a dizer que um pastel de nata não está fresco, ou que tem a impressão de ter sido enganado no troco por um motorista de táxi.
Em quarto lugar, apesar do português passar o tempo a resmungar e a queixar-se quando está perto de Portugal, sabe-se o que lhe acontece quando está há muito tempo longe dela. Os grunhidos transformam-se em gemidos e as piscadelas de olho já não vencem senão lágrimas. E pensa invariavelmente: «Portugal é uma bruxa, mas antes mal tratada por ela do que bem por outra donzela...».
Em quinto e último lugar (e o «Quinto» não é fortuito), temos a derradeira prova da paixão do português por Portugal. Tem a ver com a ideia que ele tem do que Portugal podia ser. Para cada português, «isto podia ser o melhor país do mundo se...» (Segue-se uma condição invariavelmente impossível de se cumprir). A miragem deste país potencial é um paraíso que agrava substancialmente o inferno que os portugueses já supõem aturar. Isto porque os portugueses graças a Deus, têm expectativas elevadíssimas. Nada abaixo do Quinto-Império pode garantir satisfazê-los. Nenhum português se contenta, por exemplo, só com pertencer à Europa. Aliás, só começaria a contentar-se caso fosse a Europa toda a pertencer a Portugal. (E mesmo assim, qual não seria o português, com um cepticismo que provém de um longo e civilizadíssimo cansaço cultural, que não desconfiasse logo que «isto agora da Europa pertencer a Portugal traz água no bico, com certeza...?»).
Estas expectativas insaciáveis revelam-se na saudável mania que têm os portugueses de comparar Portugal só com a pequena minoria de países que se encontram em muito melhor situação. Para um português, Portugal é o país mais pobre do mundo. Isto é, do mundo «que interessa». Se lhe falarmos nos demais 75% que estão piores que nós, diz logo: «Está bem, mas isso nem se fala...» Nem é preciso ser a Nicarágua ou o Bangladesh — basta mencionar a Grécia ou a Turquia para ele se virar para nós com ar despeitoso e incrédulo e dizer: «Ó filho, está bem, mas isso...».
É curioso notar que a Espanha goza de um estatuto especial nestas comparações. Nem conta como «melhor» nem «pior». A Espanha é sempre até, e a frase «Até na Espanha...» tem o significado precioso de chamar a atenção para um país reconhecidamente rasca onde, neste ou naquele aspecto, já estão escandalosamente melhores do que em Portugal. De qualquer modo, os espanhóis não são como nós. Acham, por exemplo, que é motivo de orgulho ser-se espanhol. Nisso pelo menos, estão muito piores que nós. Entretanto, compreende-se que o difícil não é amar Portugal — o difícil é deixar de amá-lo, também porque é sempre difícil nós sermos felizes.

Miguel Esteves Cardoso, in "A Causa das Coisas"

terça-feira, 22 de março de 2011

Sons




A apreciação musical é mais introspectiva se comparada com a de pintura ou de literatura.
A apreciação musical apela a um tempo de duração indizível que não pode ser aprisionado no discurso. É pela superfície que reagimos às múltiplas emoções e impressões vividas que acompanham uma obra musical e cujos sons-em-contexto escapam ao controle da consciência.
Na pintura e na literatura há tempo para elaborar discursos conscientes. Na música, há mais silêncio; sonho solitário.
A apreciação da música é uma experiência mais solitária e privada do que a apreciação da pintura ou da literatura. Ouvir música é mais como sonhar; a nossa actividade imaginativa é largamente solitária. Tu e eu ficcionalmente.

Walton

segunda-feira, 21 de março de 2011

Quem não Dava a Vida por um Amor?


O essencial é amar os outros. Pelo amor a uma só pessoa pode amar-se toda a humanidade. Vive-se bem sem trabalhar, sem dormir, sem comer. Passa-se bem sem amigos, sem transportes, sem cafés. É horrível, mas uma pessoa vai andando. Apresentam-se e arranjam-se sempre alternativas. É fácil. Mas sem amor e sem amar, o homem deixa-se desproteger e a vida acaba por matar.
Philip Larkin era um poeta pessimista. Disse que a única coisa que ia sobreviver a nós era o amor. O amor. Vive-se sem paixão, sem correspondência, sem resposta. Passa-se sem uma amante, sem uma casa, sem uma cama. É verdade, sim senhores.
Sem um amor não vive ninguém. Pode ser um amor sem razão, sem morada, sem nome sequer. Mas tem de ser um amor. Não tem de ser lindo, impossível, inaugural. Apenas tem de ser verdadeiro.
O amor é um abandono porque abdicamos, de quem vamos atrás. Saímos com ele. Atiramo-nos. Retraímo-nos. Mas não há nada a fazer: deixamo-lo ir. Mais tarde ou mais cedo, passamos para lá do dia a dia, para longe de onde estávamos. Para consolar, mandar vir, tentar perceber, voltar atrás. O amor é que fica quando o coração está cansado. Quando o pensamento está exausto e os sentidos se deixam adormecer, o amor acorda para se apanhar. O amor é uma coisa que vai contra nós. É uma armadilha. No meio do sono, acorda. No meio do trabalho, lembra-se de se espreguiçar. O amor é uma das nossas almas. É a nossa ligação aos outros. Não se pode exterminar. Quem não dava a vida por um amor? Quem não tem um amor inseguro e incerto, lindo de morrer: de quem queira, até ao fim da vida, cuidar e fugir, fugir e cuidar?

Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume'

domingo, 13 de março de 2011

Banalizações


Deixamos de estar num estado de manutenção e de prevenção, para sermos automaticamente recambiados para um estado de alerta, onde o ínfimo movimento transtorna uma maioria. Todavia, mais do que nunca, vive-se das minorias, e do medo que elas trazem aos grandes grupos. Seja o que for que lhe chamem, tudo se baseia nas raízes íngremes, intrínsecas do medo. As minorias populacionais fazem a sociedade, os preconceitos, os estereótipos, as agressões, as leis, os aumentos de impostos, os cortes nas pensões e, até, as medidas de austeridade. Mas são igualmente as minorias a irem para a rua, e o medo que se tem delas é fácil de entender: é o medo de deixarem de o ser. Clara e subitamente uma minoria passa ao seu oposto. A receita subsiste numas pitadas de coragem, alguma sorte com a divulgação, três colheres de motivação e quatro de união. Tudo bem agitado e colocado numa boa panela, a refeição ideal para aqueles que vêem as suas perspectivas de vida cada vez mais estreitadas por normas que não tiveram culpa de serem tomadas.
Mas este estado de alerta é tão fatal como impensável. Era-nos imprescindível continuar a viver naquele nosso ordinário estado de prevenção. Era preciso não ir na enxurrada do colectivismo para não morrer afogado nas ideologias que nos foram ministradas involuntariamente. Resistir às estrondosas e ridiculamente ridículas pressões políticas, efectuar a distinção magnífica entre o homem artista e o homem das massas, que perde as suas metas por se afundar demasiado noutras que não as suas. Tornou-se fatal o caminho penoso para a qualidade de vida das classes baixas, embora seja humanista aquele que o tomem, porém, é analogamente humano, mais, possivelmente, que se combata para que a condição mais sagrada do homem dê passos gigantescos na sua vanguarda, libertando-se das massas satisfeitas com a assistência médica e cobertura da imprensa. Em pouco tempo vamos poder observar essas massas felizes com as coisas triviais, completamente aliviadas do sentido de expressão pelo qual seriam inicialmente dominadas: essas populações em modo standard que perdem o sentir e que passam a ser unicamente tactuais naquilo que fazem, sem quaisquer momentos de sublimação, intimidade, ou consumação das suas aspirações, sem que as palavras sejam articuladas e os gestos passem a ser condições suficientes. Querem que voltemos ao plano dos símios, dos primatas, desde que não evoluamos. No fim de contas, nós não somos bonecos, nem marionetas que balançam ao som e ao ritmo dos governadores. A tragédia é a banalização. A tragédia é uma democracia de poder mais parlamentar do que populacional.