Sol. Brisa leve. Outono. Folhas castanhas caídas pelo chão. Carros a passarem. Um pequeno parque, tradicional, bancos verdes, estragados pelo tempo, com pés de ferrugem e acentos cheios de maresia. As árvores fazem sombreado nos bancos e nos caminhos de terra pelo parque. Os bancos estão frios, o sol não chega para os atingir. Do outro lado o paredão, as bicas de água para os ciclistas e praiantes, os guarda-sóis que ali costumavam estar, que quase não deixam ver o mar, que já não habitam mais ali nesta época. E mesmo que habitassem, a maré está cheia e bem viva, vêem-se bem as ondas a rolarem a areia, agitadas, violentas como nunca e como sempre. É tarde demais, o ano já está a chegar ao fim e os praiantes são poucos ou nenhuns. Inteligentes esses poucos que não se deixam abater pela falta de sol e persistem no mergulho diário.
Do lado direito, frente a frente com o parque, de costas para o mar, um banco. Não é verde, é de pedra, é cinzento, é ainda mais frio. Ao lado, a paragem do autocarro, vazia, parece-me. É aí que ela chega, cheia de vida a correr na pele, mas com escassez da mesma nos olhos. Vem devagar a olhar o mar, a sentir o odor e a cumprimentar as senhoras gaivotas que ainda rezam por algum peixe na costa. Traz o brilho que faltava, que se dantes já era muito, agora simbolizava abundância.
Sentou-se no banco de pedra a olhar as árvores do outro lado da rua. Fez um caminho de uma hora de casa até ali, gastou dinheiro em transportes só para ficar ali sentada durante ligeiros minutos, não é fascinante? Sabia-lhe bem estar ali, ali ninguém a conhecia, ali ninguém sabia o porquê de ela ali estar, o porquê de precisar daquele tempo, o porquê de todos os porquês que se interpunham mediaticamente na sua cabeça e que não lhe davam as dízimas de sossego de que tanto estava a precisar. «Férias longínquas, isso sim era uma óptima ideia», eram as palavras que ela concluía, todas as vezes que pensava. Os seus sentidos estavam ao rubro, mais atentos do que nunca, se calhar devia fazer uns exames, aquilo não era normal. Pulsação no auge, Respiração fugaz, um contraste para com os dias em que o coração mal se sente bater no seu peito.
Depois de já ter visto as folhas, os raios distintos de sol, as gotas de orvalho matinal que ainda ali permaneciam, levantou-se novamente, mas ficou ali, de pé, admirar a madrugada sonolenta. Tinha de ir, tinha de ir para casa, tinha de se sentar e escrever-lhe uma carta. Tinha de lhe pedir desculpa, de lhe dizer que o assunto ainda não estava resolvido, muito menos acabado, que as palavras de sangue frio não deviam jamais ser levadas a sério, que se arrepende muito e que quer voltar atrás, que não consegue viver assim, que está cansada e não sabe se consegue, ou quer, continuar.
Voltou costas ao banco, despediu-se do mar, acenou às árvores, correu o caminho de volta, apanhou um táxi, saiu à porta de casa, correu pela porta dentro, subiu a escadaria de rompante, empurrou a porta do quarto, trancou-se a sete chaves, rasgou as folhas dos cadernos, pegou na caneta, escreveu. Escreveu até não poder mais. Escreveu até ganhar feridas nos dedos. Escreveu até sentir que a alma já não estava em si, mas sim no papel. E depois disso, tirou o coração e colou-o na folha também. A caneta ficou sem tinta assim como ela que ficara agora vazia por dentro. Já não sentia nada de nada, só aquelas folhas que tinha na mão lhe activavam o tacto, mas mais nada a mantinha desperta.
E enviou a carta. Leu e releu, incontáveis vezes, o endereço e a identificação do destinatário, para que tivesse a certeza de que tudo estava devidamente corrigido, perceptível, certo, dentro dos parâmetros, para lhe dar a certeza de que ninguém se iria enganar na entrega, que tudo correria como planeado, que depois daquilo, o retorno era inevitável, ou não estaria ela a dar do seu próprio sangue numa carta a algo ou alguém por quem não tivera deveras a certeza dos seus actos. Estava ali a sua alma, a sua mente, os segredos, as confidências, as mágoas, o que não pode ser dito, lado a lado com tudo aquilo que se pode dizer, quase num pecado capital que já ninguém comete por ninguém.
Marco de Correio. Correio com urgência. Pessoas a passarem. Um bebé num carrinho, uma mãe cheia de sorrisos. Um ciclista cheio de suor e cansaço. A carta a escorregar por entre aquela entrada minúscula, a desaparecer por entre os seus dedos finos e delicados, porém magoados, após tanta escrita. Voltar para casa, não sentir nada, arrumar o quarto, sem sentir nada, almoço de família, sem saborear os alimentos, beber um copo de água e sentir que se está a flutuar no vazio.
Uma semana, duas. Um mês, dois, seis, oito meses. Um ano, um ano e meio. Três anos. O nada continua, não há resposta, nada foi retribuído, nada permanece, nada se restitui. Nada.
Ou se enganara no endereço, ou as palavras já não podem expressar sentimentos, almas e pensamentos, nunca irão recuperar o que foi perdido.
Se está perdido, não se recupera.