sábado, 3 de abril de 2010

Vida por palavras


Enquanto as cidades adormecem e me escondem, para me poder abraçar ao meu mundo, acendendo os meus sentidos com o brilho do luar, para me deixar planar, até sentir que tudo pára em meu redor, para só depois, só depois de dar a volta ao mundo, rodopiar por vales e areais, desenhar múltiplos corpos num só para não me esquecer das suas formas, só aí, percebo o calor do frio que vem da miragem, e devagar, devagarinho, se entende a distância entre o silêncio e a voz, que guardo bem no fundo de mim.
Compreendo que a vida não é breve. Estende-se, por paisagens frescas e singelas, por guerras frias e pálidas, por desertos asfixiantes e áridos, ultrapassa o avesso da paixão e ainda se reanima quando respira o ar rarefeito e molhado do amor. Afoga-se em memórias e lembranças que esquecem o peso do tempo largo, e recordam os bons tempos de infantilidade e despreocupação, das bonecas de porcelana e dos carros em miniatura, do pontual baloiço, do escorrega, dos carinhos da mãe e das cócegas do pai. Mas volta, o amor, que o mundo alcança, do mundo parte e ao mundo se sobrepõe, insconstante e inseguro, como se quisesse sair e salpicar os seu pedaços no mais escuro chão, para que todos vejam os seus vidros quebrados.
“Vida”, que em quatro letras conjuga a diversidade planetária, o inteligível e o ininteligível, unidos por um fio invisível e imperceptível à humanidade, que teima em renegar aos múltiplos conceitos do paranormal inevitável, ou talvez, da mais respeitável e simples complexidade do ser. Em tão pouco se alberga tanto, num bailado de cores, de ilusão, de cheiros, de paladares e de sons, instáveis, paralelos, relacionados nas nuves, nas bolas de sabão do subconsciente improvável, na luz que entra pelas janelas dos quartos, cheia de pensamentos em forma de estrela, levados a bordo de uma viagem, onde o vento é comandante que não conhece o rumo, lado a lado com a brisa ténue que sabe a vazio e a neutralidade.
Um prédio, um edifício alto que requer cuidado na subida. O primeiro piso nasce, o último morre, com a sina nas mãos, abertas e serenas, numa angústia perene. Os degraus entre eles são só a perda de tempo e a demonstração de existência de cada um dos seus breves e dificultados patamares. Esfacelada e triste, sobe a vida por um muro escarlate, pintado de sangue, tentando esquecer as batalhas alheias de um lugar à parte, onde se esquarteja e se mata sem pudor ou remorso, morticínio incessante e desmedido, imposto por muralhas erguidas em volta do peito, que não permitem partidas ou chegadas.
Ter vida é ter história, é fazer memória sem a ter, é dar amor sem pedir para receber. Vida é como uma pena leve que descai dos ares incongruentes até tocar o chão, onde esmorece mas não esquece, parte mas não morre, pois o coração é capaz de manter a vida eterna. Vida, que existe em tudo, para tudo e por tudo, e ainda sobra para oferecer, já carregada de ternura e expressão, com o destino escrito a permanente, por preto no branco, numa parede de cetim a cheirar a baunilha funérea e desalinhada, atrás dos perigos e das amarguras, escondendo-se num fretenir estranho e pantagruélico, cheio e tudo, completo de nada.
Ainda assim alcança sem descanso, e quando descansa volta a alcançar, num corrupio de sentimentos e emoções, e sonhos, pois nunca ninguém se esquece de sonhar. E é só isso que a vida implora, de forma sábia e pecadora: um misto de sensações congratulantes e específicas, em abraços e beijos, e prazeres que nem sempre nos podem dar, que não mordem e não traem, não enganam e não fogem sem motivo, que inexplicavelmente não tem explicação possível e passível de ser traduzida fisicamente. Sinestesias completas, onde se interpretam os mais inegáveis amores, como o amor da amizade, ou o amor que existe na ternura, que se aglomeram formando o amor do amor, o amor da paixão e da loucura, da insanidade pervertida, tudo num só, criando algo de tão belo e tão perfeito que se soma e se aglutima com a realidade e com o sonho, com o tudo, desfazendo-se do que não é nada, como se de tudo fizesse parte, como se de tudo fosse essência e razão, de dever e obrigação, como se fosse pura vida e simples arte, como que se de amor com amor fizesse parte.
Ridícula e abstracta é esta vida em que vivemos, com cada uma de outras muitas vidas nos braços, hospitaleiros, em regatas naufragadas pelo vento, pela dor dos caminhos e pelo peso dos dias, que esbatem o sal colado à flor da pele, dando acidez a um mergulho com destino ao irrisório infinito, onde nada é pedra e tudo é papel, onde se escreve e se sonha simultaneamente, onde a imaginação abre as suas asas de condor e abarca o universo saturado de fel.

(premiado no Concurso António Botto e Jorge de Sena, 2009)

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