Acordou com o silêncio. O despertador que insistira determinantemente para não tocar, os pássaros que já não cantavam com raiar do sol. Fez deslizar o braço até ao seu lado direito mas a busca do calor foi em vão. Só o frio do que está vazio se situava do outro lado da almofada, o que o fazia então despertar de vez.
Não foi preciso afastar as cortinas e abrir a janela para sentir o cheiro a chuva a tocar o alcatrão, não foi preciso ligar a televisão para se aperceber das tragédias do mundo num piscar de olhos. Estava tão preso a si que a realidade lhe caía no estômago como um copo de leite numa criança. O tacto regulava-se pelas singelas texturas que encontrava aqui e ali involuntariamente, num andar arrastado e peregrino de quem não vive e não sente sem propósito algum. Eis que o seu olhar, negro de luto, já nem esse se deslocava para onde quer que fosse. Tinha perdido tudo aquilo para que se acostumara a olhar. Qualquer meta antiga era agora destronada pelo desgosto e pela melancolia, pela sua dramatização fiel do mundo real que morava consigo.
Nem uma pista do seu corpo, daquela alma tão puritana que ele tanto estimava, como se fosse sua. E era, de facto.
Restavam uns aromas nos cantos da casa, uns perfumes asfixiantes nos bolsos das roupas, umas fotografias e umas pinturas rasgadas pela brisa do que foge. Sobravam os seus olhos mortiços e fustigados de quem perdeu para sempre o seu objecto de vício, olhos de quem guarda para sempre uma imagem inalterável de amor, de uma utopia arruinada, de um juramento manipulado, de uma dependência doentia. Ela prometera-lhe que nunca o ia deixar, mas deixou, e partiu para sempre, partindo e nunca voltando, abandonando as origens, sendo levada para o desconhecido profundo e magnético. Morrendo.
Na sua cabeça estava ainda a dormir, um sono num abismo terrível, um abismo infinito. Não sentia nada, nem os sons dos carros na rua, nem o cheiro a tarte no forno, nem o gato que se encostava aos seus pés.
A saudade daquele que perece é a saudade mais cruel de todas, pois é uma saudade que não se pode quebrar, que não se esquece. E ele sabia que iria ficar assim para todo o sempre, que não ia passar, dissessem os vocábulos que dissessem, só ele sentia, só ele era capaz de entender o que lhe amarrava o peito, o que lhe apertava o pescoço, o que lhe esmagava as ideias, o que lhe dava uma vontade de gritar até sangrar as cordas vocais. Apenas ele se caracterizava agora pela revolta e pela mágoa, por um deserto de sensações e emoções que teimavam em permanecer nele, em fazê-lo falecer também. Melhor assim, talvez, pensava.
Foi até ao espelho, olhou as suas próprias faces. Inacreditavelmente, estava a chorar e as lágrimas estremeciam-lhe a cara rosada com uma velocidade mirabolante sem que ele próprio as sentisse. Escorregou as costas pela parede cor de pêssego e sentou-se no chão de madeira ténue. Era ali que também ele queria adormecer, permanentemente.