sábado, 19 de junho de 2010

Ambíguos

Eu acordo e observo-te nessa tua delineação megera de fases, nessa reflexão intrometida de um corpo que não se mede por palmos. A tua respiração, que me mata ao de leve. O som dos lençóis a enxugarem a tua pele e o piar dos pássaros lá fora, que fazem com que o nosso quarto se esvazie do silêncio.
Levanto os olhos sobre a secretária e busco aquilo que não tenho. Tu ainda dormes e o dia ainda é juvenil, a minha aura ainda não despertou e apenas a minha capacidade tumultuosa e despercebida de interpretação e análise está de vigília. O pôr os pés no chão frio arrepia-me a espinha e cada passo é como um desvio para o sítio que não conhecemos. O morticínio incessante que arrastas na tua boca é o que me enlouquece, a tua própria quietação é que me leva a um estado de dura necessidade desnecessária de ti. Os tapetes deslizam sob mim e o chão vai quase como que se abrindo pelo buraco do nada. Nas gavetas, as minhas memórias literárias, que já nem reconheço. São de alguém diferente, que se dissipou com a brisa do contra-relógio. São somente os restos dos eus perdidos nas meras cartas sem assunto, representações iluminadas de uma realidade que, como o todo que é mutável, deixou de o ser. Tu também o és, como minha metade incompleta que desenhas no estrado do quarto. Cada um guarda em si uma multiplicidade inequívoca de personalidades rasgadas, erodidas pelo tempo e pela distância que se percorre, pela cultura em que se insere e que protagoniza, pelas pessoas que partilha, pelas tarefas que conclui. 
Estou em pedaços e tu salvas-me. Eu caio e ofereces a mão. Simplificas, eu complico. Multiplicas, eu divido. Eu sonho, tu realizas. Eu discurso, enquanto tu ouves. Cantas, eu componho. Desenhas, eu escrevo. Eu sou duas, juntos somos quatro e o nosso choque é desmedido. Fazes parte, eu sou parte. Somos dois e somos milhares. Somos aquilo que não sabemos e vamos acabar precisamente onde não queremos.
Agora desperta, as estrelas chamam.

1 comentário:

  1. Adorei mesmo, as últimas frases do texto, o último parágrafo, está realmente bonito, principalmente a parte em que tu dizes: «Estou em pedaços e tu salvas-me.»

    Exactamente, muitas vezes desejei não ouvir a verdade, por saber já do princípio que ela me iria cair mal, que me iria magoar. E tentava sempre descobrir outra. Para mim, havia sempre outra maneira, outra justificação, que não aquela.
    Neste caso, o motivo está lá, para mim, para o outro lado é que não existe sequer a possibilidade de algo estar mal, recusa-se a aceitar o motivo. Mas escrevi aquilo a pensar em mim e não noutras pessoas, porque passo por situações que por muito que tente entender, não me dão algo concreto, é algo inconclusivo e que me magoa e só tenho mais é que aceitar, porque não há nada que eu possa fazer em relação a isso. Deixa de estar nas minhas mãos.

    ps. ah não sabia que gostavas da música, por acaso é mesmo muito bonita, gosto da letra (':
    Então quando entras no meu blog vai a casa toda abaixo x)

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