sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Entender, mais pelo Sentir que pela Razão


Uma verdade só o é quando sentida - não quando apenas entendida. Ficamos gratos a quem no-la demonstra para nos justificarmos como humanos perante os outros homens e entre eles nós mesmos. Mas a força dessa verdade está na força irrecusável com que nos afirmamos quem somos antes de sabermos porquê.
Assim nos é necessário estabelecer a diferença entre o que em nós é centrífugo e o que apenas é centrípeto. Nós somos centrifugamente pela irrupção inexorável de nós com tudo o que reconhecido ou não - e de que serve reconhecê-lo ou não? - como centripetamente provindo de fora, se nos recriou dentro no modo absoluto e original de se ser.
Só assim entenderemos que da «discussão» quase nunca nasça a «luz», porque a luz que nascer é normalmente a de duas pedras que se chocam. Da discussão não nasce a luz, porque a luz a nascer seria a que iluminasse a obscuridade de nós, a profundeza das nossas sombras profundas.
Decerto uma ideia que nos semeiem pode germinar e por isso as ideias é necessário que no-las semeiem. Mas a sua fertilidade não está na nossa mão ou na estrita qualidade da ideia semeada, porque o que somos profundamente só se altera quando isso que somos o quer - e não quando nós o deliberamos. Assim nasce um desencontro quantas vezes entre a mecânica dos nossos raciocínios e a verdade que em nós já é morta. No hábito dos gestos, as mãos tecem ainda na exterioridade de nós a plausibilidade do que em nós já não é plausível. Então nos é necessário substituirmos toda a aparelhagem de que nos serviríamos e já não serve. Surpresos olhamos quem fomos porque já nos não reconhecemos.
Atónitos perguntamos como foi possível?, quando, onde, porquê?, ao espanto da nossa transfiguração, ao incrível da cilada que nós próprios nos armámos, mesmo quando foi a vida que a armou; porque tudo quanto é da vida, e dos outros, e dos mil acontecimentos que quisermos, só existe eficaz e real quando abre em evidência na profundidade de nós. Como aceitar assim a força da razão, se a força dela está onde ela não está?
Vergílio Ferreira, in 'Invocação ao Meu Corpo'

Balançar

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Retrato perene


Estão os dois de pé, belos e jovens, de frente para o fotógrafo, mostrando no rosto uma expressão de solene gravidade que é talvez temor diante da câmara, no instante em que a objectiva vai fixar, de um e de outro, a imagem que nunca mais tornarão a ter, porque o dia seguinte será implacavelmente outro dia... Minha mãe apoia o cotovelo direito numa alta coluna e segura na mão esquerda, caída ao longo do corpo, uma flor. Meu pai passa o braço por trás das costas de minha mãe e a sua mão calosa aparece sobre o ombro dela como uma asa. Ambos pisam acanhados um tapete de ramagens. A tela que serve de fundo postiço ao retrato mostra umas difusas e incongruentes arquitecturas neoclássicas'. E terminava: 'Um dia tinha de chegar em que contaria estas coisas. Nada disto tem importância, a não ser para mim. Um avô berbere, vindo do Norte de África, um outro avô pastor de porcos, uma avó maravilhosamente bela, uns pais graves e formosos, uma flor num retrato.

José Saramago in Discurso perante a Real Academia Sueca, Estocolmo, 7 de Dezembro de 1998

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

5 Minutos

Tens cinco minutos. Tens o declínio e tens o infame, tens o flamejar de algo que não sabes justificar e tens o rodear de uma estrada que te leva à meta mais profunda. Tens as tuas decisões, os teus problemas, tens todas as preocupações mundanas que te cercam e te estrangulam a cada minuto que passa.
E é isso mesmo, é o passar do tempo. De cinco minutos, já só tens três. Os três estão a contar e o tic-tac do relógio é uma coisa que ainda não sabes travar. Quando dás por ti, o tempo já passou, e tu, onde estás? No mesmo lugar, na mesma posição, no mesmo raiar de espaços que te perturbam, na mesma debilidade e instabilidade que te manipula distraidamente. Todavia, não sabes se vais continuar aí ou se vais partir desafogadamente para outrora, para outro sítio conhecido ou desconhecido, bom ou mau, aborrecido ou de fortuna. Não reconheces as possibilidades perante o que chamas ser a tua própria figura senil. Porque elas são demasiadas, tantas e tão emaranhadas que chegam a ser incontáveis.
Vais mesmo deixar que o tempo se encarregue do que és? Perdeste a dinâmica.