terça-feira, 27 de abril de 2010

Desertificado



Acordou com o silêncio. O despertador que insistira determinantemente para não tocar, os pássaros que já não cantavam com raiar do sol. Fez deslizar o braço até ao seu lado direito mas a busca do calor foi em vão. Só o frio do que está vazio se situava do outro lado da almofada, o que o fazia então despertar de vez.
Não foi preciso afastar as cortinas e abrir a janela para sentir o cheiro a chuva a tocar o alcatrão, não foi preciso ligar a televisão para se aperceber das tragédias do mundo num piscar de olhos. Estava tão preso a si que a realidade lhe caía no estômago como um copo de leite numa criança. O tacto regulava-se pelas singelas texturas que encontrava aqui e ali involuntariamente, num andar arrastado e peregrino de quem não vive e não sente sem propósito algum. Eis que o seu olhar, negro de luto, já nem esse se deslocava para onde quer que fosse. Tinha perdido tudo aquilo para que se acostumara a olhar. Qualquer meta antiga era agora destronada pelo desgosto e pela melancolia, pela sua dramatização fiel do mundo real que morava consigo.

Nem uma pista do seu corpo, daquela alma tão puritana que ele tanto estimava, como se fosse sua. E era, de facto.

Restavam uns aromas nos cantos da casa, uns perfumes asfixiantes nos bolsos das roupas, umas fotografias e umas pinturas rasgadas pela brisa do que foge. Sobravam os seus olhos mortiços e fustigados de quem perdeu para sempre o seu objecto de vício, olhos de quem guarda para sempre uma imagem inalterável de amor, de uma utopia arruinada, de um juramento manipulado, de uma dependência doentia. Ela prometera-lhe que nunca o ia deixar, mas deixou, e partiu para sempre, partindo e nunca voltando, abandonando as origens, sendo levada para o desconhecido profundo e magnético. Morrendo.

Na sua cabeça estava ainda a dormir, um sono num abismo terrível, um abismo infinito. Não sentia nada, nem os sons dos carros na rua, nem o cheiro a tarte no forno, nem o gato que se encostava aos seus pés.

A saudade daquele que perece é a saudade mais cruel de todas, pois é uma saudade que não se pode quebrar, que não se esquece. E ele sabia que iria ficar assim para todo o sempre, que não ia passar, dissessem os vocábulos que dissessem, só ele sentia, só ele era capaz de entender o que lhe amarrava o peito, o que lhe apertava o pescoço, o que lhe esmagava as ideias, o que lhe dava uma vontade de gritar até sangrar as cordas vocais. Apenas ele se caracterizava agora pela revolta e pela mágoa, por um deserto de sensações e emoções que teimavam em permanecer nele, em fazê-lo falecer também. Melhor assim, talvez, pensava.

Foi até ao espelho, olhou as suas próprias faces. Inacreditavelmente, estava a chorar e as lágrimas estremeciam-lhe a cara rosada com uma velocidade mirabolante sem que ele próprio as sentisse. Escorregou as costas pela parede cor de pêssego e sentou-se no chão de madeira ténue. Era ali que também ele queria adormecer, permanentemente.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

De novo, Hoje


Tenho segredos a revelar. Confissões que nunca fiz e possivelmente jamais farei. Ideias especulativas que nunca me atrevi a referir. Opiniões injustas que escondo espontânea e voluntariamente, críticas a apontar que guardo só para mim, medo de represálias e de olhares indiscretos.
Não espero que me ouçam ou que compreendam, nem tenciono sequer contar aquilo que há muito mantenho em mim. Estou certa de que metade não é passível de interpretação alheia e de que apenas eu tenho a chave para o cofre, o código para decifrar as minhas mensagens. Não fico contente se me perceberem e espero o contrário de quem bem me conhece. Dispenso o sentimento mortiço de compaixão e relevo para o infinito incomensurável todas as frases depreciativas que possam surgir por hoje. Pois o hoje é só meu e estou a pensar afogar por completo as críticas, não que estas não sejam, quando aceites, a pura e única salvação do mundo, porque são, mas sim porque a frieza do momento não me permite avaliá-las quantitativamente. E o momento pede calma e reflexão, resmunga por perdão e perde-se indefinidamente nos meus pensamentos, moldados à minha maneira.
Vou soltar as rédias de um dia finito que já acabou, vou entrar no meu círculo, vou participar no jogo, vou sacudir os percalços, abalar o inabalável. E como o hoje é meu, e o amanhã é incerto, hoje fico-me pelos dias que passaram e perco-me no desvendar do futuro, no mistério dos dias que daqui passarão. E como hoje sou uma pessoa diferente, sei que amanhã o meu temperamento pode alternar. E tal como a lua, não tenho uma fase certa sem que para isso recorra à função matemática das probabilidades.
Vou andar descalça, vou soltar o cabelo, excarcerar os mártires e porventura, descativar as vontades. Desperdiço a vida com afirmações de que tenho de iniciar um novo ciclo, redesenhar uma etapa singular com mais ilustrações, nunca o faço. Vou rezar para que aconteça hoje.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Mantém-te original

Attitude


The longer I live, the more I realize the impact of attitude on life. Attitude to me is more important than facts. It is more important than the past, than education, than money, than circumstances, than failures, than success, than what other people think or say or do. It is more important than appearance, gift, or skill. It will make or break a company...a church...a home. The remarkable thing is we have a choice every day regarding the attitude we will embrace for that day. We cannot change our past... we cannot change the fact that people will act in a certain way. We cannot change the inevitable. The only thing we can do is play on the string we have, and that is our attitude. I am convinced that life is 10 percent what happens to me and 90 percent how I react to it. And so it is with you... we are in charge of our attitudes.


Charles Swindoll

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Delírio


Sento-me aqui e simplesmente dou por mim a pensar no absurdo que é escrever. Estou aqui meia parada no tempo, meia avançada no futuro e ligeiramente retida no passado, numa escala de zeros, enquanto podia sair com amigos, dançar, passear. Mas a verdade é que opto sempre por levitar num círculo muito meu, muito à parte do que é real, para me comprometer com as palavras que não são ditas em diálogo quotidiano. Juro e julgo que por vezes sinto que é mesmo ridículo desperdiçar tanto do meu tempo nisto, e ao mesmo tempo, sabe tão bem e desocupa-me a mente como mais nada nem mais ninguém o conseguiria fazer. Afigura-se como uma espécie de loucura ou capricho, um devaneio premeditado, um tipo abstracto de esquizofrenia, como se duas pessoas crescessem em mim e apenas uma se expressasse aqui, como se essa mesma vivesse as experiências de outra maneira, por outros pontos de vista, com outras emoções. Talvez seja por isso que sinto tanto e de modo tão forte tudo o que me cerca. É estranho de uma forma positiva, engraçado de uma forma negativa e inexplicavelmente contagiante, que deleita e concretiza. E assim como naquilo que escrevo, também em mim mesma existe uma parte subterrânea incansável, inexplorável, um mistério que não se sabe se é fidedigno e que nunca se consegue transmitir por completo pois denota problemas de expressão gravíssimos. Penso que é isso a essência da criação, a parte principal das obras de arte, a letra fundamental do abismo dos derradeiros pensamentos e sensações. Tudo aquilo que não se percebe é tudo aquilo que mais nos atrai.
Como uma doença: fechar-me no quarto a escrever, perder parte de mim em cada vocábulo, colocar um sentimento em cada sílaba, isso não é enlouquecer? Criar paradigmas em redor de tudo aquilo que penso merecer crítica, tornar heterodoxo aquilo que a sociedade considera correcto e praticamente sem falhas, não é perfeita loucura? E loucura não é, de certo modo, quebrar as regras, saltar as vedações, cruzar os limites, sair do contexto do “normal”? Sair dessa dada normalidade, combater todas essas legislações impostas e exigidas implora uma certa e demasiada coragem, segurança, ausência de medos, portanto, a loucura é um instrumento de vencedores, uma ferramenta de soldados em campo de guerra. No entanto, quem escreve acaba por não ser tão corajoso como queria, pelo contrário, quem escreve finge, quem escreve não actua, não confronta, não simplifica. Quem escreve não é louco pois detêm em si uma quantidade de sanidade que é mais que suficiente para deter e controlar toda a loucura em si existente. Quem escreve, tal como eu, tal como todos, quer se passe ou não a ideologia para uma folha de papel, ainda detém em si demasiados sonhos que acarretam demasiados medos, demasiados pontos fracos, demasiadas lágrimas, múltiplas impossibilidades, inúmeras fraquezas que são, para já, indestrutíveis. Quem escreve, quem pensa, quem sonha, é somente dono de um delírio planeado.